Seixos Rolados
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Veja também a apresentação virtual de Trovas* da autora e a publicação de suas Poesias*, Trovas* e Reflexões* na íntegra.
A Vida em Prosa e Verso, Seixos Rolados, Contos e Crônicas, Glorinha Mourão Sandoval, Português, São Paulo, Editora Ibis Libris, 2005.
Glorinha Mourão Sandoval teve trabalhos publicados em revistas, antologias e jornais. Foi laureada com troféus e medalhas, recebendo menções honrosas e especiais ao participar de concursos literários. Em 1992 publicou o seu primeiro livro, Asas do Tempo, e, alguns anos depois, Garatujas (1997).
A todos, que me envolveram,
Querida Glorinha, Possuem, ademais, a delicada musicalidade peculiar às almas puras e generosas. Personificam, indubitavelmente, as suas inatas qualidades, transbordantes de bondade e solidariedade. O texto, por sua vez, aos olhos do leitor, desliza sem tropeços, claro como a luz do dia, dando a impressão de estar assistindo a um bom filme colorido, em estilo pictórico. Foi o que experimentei durante a leitura, que, propriamente, não me fez sentir saudades. Saudade é um sentimento nostálgico, inspirando triste memória de pessoas, ou coisas distantes, ou extintas. Despertaram-me, ao contrário, afetuosas recordações, momentos de incontida alegria, lembrando as enternecedoras festas familiares, junto aos que nos rodiavam, ou aqueles entes queridos, que já partiram, todavia continuam visualizados, em nossas retinas, impregnadas de doces reminiscências. Constituímos você, eu e as outras irmãs, que estão vivas, os descendentes de Mário e Placidina Mourão. Éramos oito. A metade já partiu para o repouso eterno, o destino final. Restam três irmãs e este irmão mais velho, que lhe escreve esta singela amorosa carta. Porém, a mui amada Glorinha, de alma cândida, de índole boníssima, em nada mudou, desde mocinha, quando adquiriu a sua personalidade: jovial, otimista, humanitária, distinguindo, somente, o lado bom de seus parentes e das pessoas pertencentes ao seu vasto círculo de amizades. Você, minha estimada irmã, sempre se primou como boa filha e esposa exemplar. É mãe e avó carinhosa, orgulho-me de ser seu irmão. Quando você retorna a Poços, procedente de São Paulo, o que faz habitualmente, todos nós ficamos jubilosos, proclamamos em uníssono: o “Anjo da Esperança” chegou. Calha, com fecho, reproduzir o terceto final do inspirado soneto, “Há sempre Esperança”, de autoria de Marcus Vinícius de Moraes, consagrado poeta e atual presidente da Academia “Poços Caldense de Letras”: “Por mais que a tempestade se avizinhe, Em teu coração, haverá sempre uma eterna primavera. Porque... Há sempre uma esperança!” Com muita admiração, um beijo fraternal,
Todos os sábados, Tia Maria vinha nos visitar. Na verdade, não era nossa tia e, também, sua vinda nada tinha de social. Era uma velhinha sem ninguém, e nós a considerávamos como alguém da família. Perdera o marido, filhos, casa, quase tudo. Que lhe sobrou afinal? Só aquele restinho de vida, que a machucava muito: ora aqui, ora ali, pelas costas, pelas cadeiras, no joelho, no pescoço. O que ficou, mesmo, foi a dor do vazio, da solidão, a amargura da saudade! Nós, crianças de casa, aguardávamos ansiosas por esse dia, pois Tia Maria vinha buscar, em nossa casa, alimentos, remédios, roupas e tudo, que precisaria na semana. Em troca, ela nos trazia carinho, ensinamentos de vida e seus fantásticos sonhos... Nós sentávamos para ouvi-la. Suas histórias eram muito bonitas, antigas, impossíveis: fadas, anões, feiticeiras, bruxas, dragões. Dizia que via fantasmas, santos e anjos, sobre as nuvens; conhecia como encantar animais e o poder curativo das plantas. Enquanto falava, às vezes, fugia para dentro de si, para um lugar muito longe, talvez, seu passado e pedia perdão a Deus pelas ofensas cometidas. Então, não a compreendíamos e pedíamos para se explicar melhor... Fazia uma pausa, como quem pensa, e voltava a contar suas fantasias. “Era uma vez...” Foi de Tia Maria, que recebi o presente predileto de minha infância: uma boneca feita de retalhos. Para mim, sempre, foi o mais lindo e significativo brinquedo: minha amiga inseparável, minha confidente, ainda, conservo-a, como uma relíquia. Tia Maria, boneca de pano, lembranças de um outrora encantado...
Os vizinhos de minha filha possuem um gato siamês, bichano tratado com todo luxo. Chama-se Darling. Dorme na cama do casal, come à mesa, vai todos os meses ao veterinário para exame e banho. Os apartamentos lado a lado, no primeiro andar, têm um espaçoso terraço e são separados um do outro apenas por uma mureta. Assim, cara a cara, estão os condôminos... Um, contrário à permanência de animais, em apartamento; outro, que ama de paixão, o gatinho “Super”, o mais querido bichano do mundo. Ciente das idiossincrasias a animais dos senhores face a face, os vizinhos resolveram pôr um gradil de separação na varanda, entre as duas propriedades. Cautelosamente, também, colocaram uma tela sobre ele, que, no dizer da filhota, parecia feita para galinheiro e enfeava terrivelmente o ambiente. Após um diálogo, não muito diplomático, a dona do gato resolveu deixar a proteção somente do seu lado. E a paz voltou a reinar. Até que um dia, inexplicavelmente, passando não se sabe por onde, o gatinho, feliz da vida, foi passear pela vizinhança. Mas que desdita! Deu de cara com uma estranha mulher e, esta, em movimento estapafúrdio, com uma toalha, tentou espantá-lo. Encurralado, assustado, sem saída, não teve dúvida: achou um local acima do muro divisor e... “tchum!”, pulou para o vazio. Felizmente, caiu n'água, dentro de um pequeno lago artificial, onde havia uma fonte decorativa. Ainda tonto, mas com vida, correu para a portaria, não alcançando a rua, graças ao impedimento dos porteiros. Em pânico, mais apavorada que o bichano, ficou a filhota: jamais teve a intenção de causar qualquer dano ao gatinho, muito menos a um de estimação. Quando viu o salto do gato, voou escada abaixo: tropeçando, caindo, levantando, rolando, tudo para salvar o que restava do animalzinho. Aliviada, soube estar a salvo, sem ferimentos, em um lugar seguro, com os guardas do prédio. Humildemente, bateu à porta da vizinha e avisou-a do ocorrido. Com os tocantes agradecimentos da dona do bichaninho, a querela teve fim. Todavia a vizinha observou:
Fui fazendeira, nos primeiros anos de casada. Lá, nasceram meus meninos e foram criados até a idade escolar. Mudei-me, então, para a cidade, a fim de facilitar a freqüência aos colégios. Nunca mais tornei a morar no campo. Meus filhos aprenderam a amar os animais, assim como tudo que dizia respeito à vida campestre. Todavia, como era natural, mostravam preferências. Zeca, meu filho, com seus cinco anos, tinha sua predileta, Marica Penosa. Desde pintainha, fora tratada por ele de maneira especial. Acostumou-se a comer em sua mão, acompanhá-lo por onde ia, como um cachorrinho ensinado. Com o correr do tempo, Penosa transformou-se em uma linda carijó. A amizade, entre eles, aumentava. Ainda bem cedinho, Zeca corria para o quintal para tratar de Marica com farelo de milho. Depois, com ela no colo, ou no chão, acompanhando-o, ia fazer sua higiene, tomar a primeira refeição, repartindo o alimento com a amiguinha inseparável. Passava o dia brincando com a galinha, dava gosto ver como havia um completo entendimento entre ambos. Contudo essa amizade se tornou, penso eu, obsessiva. Zeca só comia se “ela” estivesse ao seu lado. O mesmo acontecia, quando ia tomar banho, ou dormir. Parecia que o mais importante, em sua vida infantil, era a bichinha! Então, algo muito preocupante aconteceu. Zeca, como sempre, levantou-se antes do sol nascer e saiu à procura de Marica. Meu marido, vendo o horário, madrugada brava, semi-escuro, procurou acompanhá-lo, em surdina, para vigiá-lo em suas andanças. Teve um pouco de dificuldade para localizá-lo. Atrás da parede da tulha, ouviu risadas e cacarejos... Zeca brincava... Ele, de galo, com sua amada namoradinha. Ao vê-los tão juntos, em intimidades, quase desmaiou. Jogou a galinha longe... Pegou o garoto pelas orelhas, deu-lhe tremendas palmadas e levou-o para casa. Como castigo, trancou-o no quarto, por um dia inteiro. Aos berros, o menino gritava: Era um caso patológico. Não sabíamos como solucioná-lo. Lembramo-nos do compadre psicólogo, que, por diversas vezes, mostrou desejo em conhecer nossa fazenda. A oportunidade surgira. A intenção era expor o caso, em particular, ao nosso amigo, que examinaria o “taradinho”, jeitosamente, sem chocá-lo em seus verdes anos... Providenciei os ingredientes para um almoço bem à moda da roça. Desejávamos recebê-lo com toda hospitalidade, pondo-o à vontade. Chegou o dia “D”, com os visitantes em casa. Meu marido foi encarregado de entretê-lo, enquanto estivesse na cozinha. Prato do dia: galinha ao molho pardo, com polenta (ou polêmica?). Onde a coragem? O sangue frio? Coitadinha da Marica! A cozinheira não quis saber, ausentou-se... Restava eu, sem a mínima vontade de cometer a sangrenta matança. Que fazer? Amarrei a pobrezinha em um mourão, na cerca; preparei uma tigela para aparar o sangue; depenei seu pescocinho e... com uma machadinha, dei-lhe uma só bordoada. Foi-se. O almoço: um sucesso! Pensando duas vezes, não parecia haver necessidade do envolvimento médico nessa “criancice roceira”. Nada falamos. Com o avançar dos dias, tudo voltaria aos seus devidos lugares... Conjeturava, quando ouvi me chamarem, era
Zequinha: Olhei: uma franguinha, ainda emplumando, fazia
a alegria do meu filhote.
“Ondas, em dança corrente, Meu apartamento dá frente para o mar. Sou moradora das areias, amo o ar marinho, é sangue nas minhas veias! Pela janela, munida de um binóculo com poderosas lentes, vejo passar navios de pequenos a grandes calados, canoas de pescadores, embarcações sofisticadas. Na praia, banhistas, ambulantes, vendedores, crianças, nadadores, gente e mais gente de todas as raças, portes e níveis sociais. É um palco de representações, com personagens variadas, tendo, como o cenário, o “Marzão” sem fim. Assim o chamo, pois sua imponência e grandiosidade aumentam minha insignificância. Navego e estou parada. Vejo mundos e estou cega. Sou monturos, água salgada, ilha, sereia, barco a vela, sou peixe mensageiro, escuta, olheiro e, sobre as ondas, dançarino. Velejo. Todo meu pensamento está no mar, na sua imortalidade lúdica. Foi, num destes momentos de espiã, que assisti a uma cena bizarra: dois jovens, entre 14 e 16 anos, dirigiam-se rumo à praia. Um alto - 1,80m, mais ou menos,- e o outro, baixo, barrigudo - 1,50m, talvez,- ambos branquérrimos, como se nunca tivessem tomado sol. Usavam calções vermelhos, desbotados, absolutamente fora de moda (quem sabe, emprestados por alguém com tremendo mau gosto). Pessoas passavam, comentavam, riam diante desses “Mutt e Jeff ”. Eles, nem aí... Com passos apressados, foram que foram... Deitaram na areia quente, sem qualquer proteção para a pele. Desejavam bronzear-se. Motivos? Óbvios... Nisso, lá vinha o trem de passeio turístico - tchiu... tchiu... piuí... -, cheio de rostinhos - tchiu...tchiu... Os garotos se levantaram; queriam apreciar melhor os passageiros, isto é, as gatinhas, sem dúvida... Mas, o que aconteceu, foi estranho... O trenzinho deu uma guinada e rodeou os mocinhos. Gritos de surpresa tão altos, que até pude ouvi-los: “Olha que lindos! O peixe-espada e a baleia fora d'água! Quá, quá quá!!!” Os pretensos galãs, o gordinho e o magrinho, escondendo suas caras, correram em direção à... Mesmo com meus potentes quatro-olhos indiscretos, não consegui segui-los...
Em um banco, num futuro jardim público, em companhia de meu irmão mais velho, assistia ao movimento e afazeres dos operários e jardineiros. Dizia que, daqui a muitos anos, quando fosse uma moça feita, neste aterro, as sementes das plantas, naquele dia, postas na terra, brotariam, transformando-se em árvores, arbustos, outros tipos de folhagens e muitas flores raras com várias cores e feitios. As pérgulas, que circundariam os canteiros, estariam cobertas pelas buganvílias e trepadeiras. Lá, seria um grande parque: onde as crianças poderiam brincar, e os maiores encontrariam um lugar apropriado para ler, divertir e aproveitar a tranqüilidade do ambiente. O maior encantamento, porém, seriam os pássaros: sabiás, bem-te-vis, socós, tico-ticos, canarinhos, maritacas, rolinhas, pombas, periquitos, andorinhas e outros. Em liberdade, encontrariam locais para seus ninhos, alimentos nas árvores, e, agradecidos, alegrariam esse recanto com seus suaves gorjeios. Sendo apenas uma garotinha, extasiava-me com as palavras de meu irmão e, vestindo-as de magia, visualizava o transformar da natureza, na imaginação. Foi desse modo que vi nascer o “Parque Municipal de Poços de Caldas”. Hoje, as árvores encorparam, as sementes tornaram a vegetação luxuriante para o nosso deslumbramento. E nós? “Folhas de um álbum, com páginas em branco. Tecidos pelo tempo, somos pequenos e inexpressivos, acordamos e adormecemos. Expandimos o supremo movimento da vida...”
Ligações telefônicas, muitas vezes, causam transtornos, quando as mensagens são errôneas ou, simplesmente, mal-entendidas. (I) Pr-r-r! Pr-r-r! Pr-r-r! Clique! Ligação cortada. (II) Pr-r-r! Pr-r-r! Pr-r-r! Telefonista: Cláudia: Telefonista: O Senhor: Telefonista: Senhor: – Pr-r-r! Pr-r-r! Pr-r-r! Telefonista: Cláudia: O Senhor: Cláudia: Papai: Cláudia: Papai: (III) Pr-r-r! Pr-r-r! Pr-r-r! Telefonista: Clóvis: Telefonista: Clóvis: Telefonista: Sr. Arruda: Telefonista: Sr Arruda: Telefonista: Sr. Arruda: Telefonista: Clóvis: Papi: Clóvis:
Todas as manhãs, quando o tempo permitia, Maria regava seu jardim, dando trato aos canteiros de espécies variadas, raras, ornamentais, arbustos floridos, em arranjos, para realçar a beleza das flores. Entretida diante da exuberância e surgimento de novos brotos, não viu um estranho pular o gradil e, silenciosamente, aproximar-se. Virou-se assustada. Ele a olhou, cigarrinho na boca desdentada, cara suja e roupa malcheirosa, pé no chão. Uma figura amedrontada, fruto da miséria que anda por aí. – Bati parmas,dona! A senhora não ouviu. Cantava e regava as pranta. – Afinal, o que deseja? Na verdade, Maria estava apavorada, pensava: “Seria um ladrão? Um estuprador? Um louco com intenções assassinas? O que representava aquela presença e ela sozinha? Se gritasse poderia ser pior... Calma, mantenha-se calma e... e... vejamos”. – Não sou marvado. Cato paper nas ruas, faço quarqué coisa pra consegui argum centavo. Vi a senhora sem ninguém e resorvi oferecê meus serviço. A senhora qué que eu regue seu jardim? Podia varrê, juntá as fôia seca e levá embora. Só quero mêmo um trabainho. Tamém um cafezinho servia... Maria sossegou. Era apenas um pobre coitado, faminto e judiado pela vida...
Após longo tempo, torno à casa paterna. Hoje, velho casarão, corroído pelo passar dos dias. Marcas profundas de abandono... Prédio condenado... Entro, sinto o vazio da penumbra, vibrações de um passado vivo em mim. Portas, janelas abertas às lembranças... Assoalho, que range suspiros, cantos, sussurros da juventude, nos quartos, vozes infantis... Em cada espaço, a visão fantástica de “algo”, até então adormecido. No trânsito louco de meus pensamentos, o vaivém da angústia. Em movimento, sombras inexistentes. Ouço lições do bem-querer, passos em compasso com o bater de meu coração. Vejo, com olhos d'alma, aqueles a quem tanto amei... Sinto presenças ausentes e toda extensão de benéficas influências. Templo de amor! Nas páginas brancas e frias do livro da vida, o destino desse lar, de seus moradores, foi selado. Luzes que se apagam. Descansa a noite no silêncio da eternidade...
Meu fraco, prazer predileto, nas horas vagas, é ser um pouco detetive: investigar, entrar em vidas diferentes.Enfim, viver, por momentos, a existência de outras pessoas. O desconhecido me atrai! Uma jovem sexy, encantadora, uma gracinha, saiu do Shopping Iguatemi, a caminho do estacionamento. Segui seus passos dis-cre-ta-men-te. Seu vestido amarelo, tubinho justo, última moda, salientava as pernas bem-feitas, realçadas pelos sapatos pretos de verniz, com bicos e saltos finos. Notei suas mãos cuidadas, unhas tratadas de quem não faz trabalho pesado, uma “expert”, talvez, em atividades intelectuais e não físicas. Seu todo, tão elegante, demonstrava educação refinada. Cabelos lisos, curtos, dourados, refletiam o brilho do sol daquela tarde radiante! Seu rosto, ah!, expressivo, meigo, pele clara, olhos azuis, nariz pequeno, afilado: uma figura de camafeu. Aparentava uns vinte e dois anos. Tudo indicava: nasceu em “berço de ouro”! Com andar de gazela, foi em direção ao carro Tempra, duas portas, vermelho cintilante! Usando o controle remoto, abriu uma das portas, com delicadeza. Sentou-se frente à direção, ligou o motor de partida e, em ré, manobrou. Saiu, lentamente, da garagem do centro comercial e, em marcha moderada, dirigiu-se aos Jardins. No meu carro, acompanhei-a. Sua moradia, presumi: Rua Califórnia, 189, uma mansão! Por coincidência, já a conhecia, pois tive oportunidade de visitá-la com o corretor. Havia sido posta à venda, no Estadão, por seu proprietário, ao mudar-se para o exterior. Estilo colonial autêntico, por fora e por dentro. Mobiliário artístico, em jacarandá talhado. Recobrindo os estofados, tecidos confeccionados em teares mineiros; o mesmo, em relação às almofadas. Os enfeites clássicos, quadros de pintores famosos, porcelanas européias (Sèvres, Galles, Limoges, Companhia das Índias, Opalinas) e incontáveis maravilhas, em esculturas, artes chinesas e tantas outras valiosas peças. O assoalho, em tábuas corridas, quase que totalmente recoberto por tapetes persas. Quatro salas, cozinhas, copa, adega e demais cômodos, todos decorados com extremo bom gosto! Deu-me impressão de estar saltando para o final do século XVIII. Deslumbrei-me! Desci do carro e, passo a passo, cheguei ao gradil do parque, que ladeava todo o casarão. Vi, então, a extensão de luxo e conforto do viver dessas pessoas: quadra de tênis, vôlei, piscina, churrasqueira, caramanchões, recobertos por lonas coloridas, poltronas apropriadas para o sol... “La vie en rose!” Em devaneio, imaginei: quais os costumes desses moradores com tão alto padrão de vida? Quais afazeres, responsabilidades, acima do nível comum? Pensariam como nós, “simples mortais”? Seriam, apenas, peças na máquina do progresso? O próprio progresso? Bobagem: só gozavam as delícias do “bem-viver”. Eram humanos como todos nós: tinham de pagar impostos, fechar o tubo de gás, desligar a eletricidade, cerrar as cortinas, trancar as portas, quando saíam de casa. “Ave César”! Todos, até mesmo a linda jovem loura, de olhos azuis, eram uníssonos com as aspirações de liberdade e amor. A meta: encontrar a felicidade. Nisso, vendo-a, novamente, consegui identificá-la. Vestindo um uniforme de servente, com uma bandeja nas mãos, servia bebidas às pessoas, que se divertiam junto à piscina. Oh!... Ah!...
Há muito procurava um carro usado, em bom estado, com pouca quilometragem, que nunca tivesse sofrido uma batida e com todos os documentos certinhos: pagamento do IPVA, seguro em dia. Surge, então, uma oferta imperdível. Soube que um proprietário, representado por Nicanor, tinha dois veículos à venda. Perfeito estado: peças originais, bem-calçadas, com estepes ainda intocados, pintados recentemente de vermelho, estofamento de luxo, mesmo ano de fabricação, quites com os impostos. Tudinho nos “trinques”. Os fuscas estavam estacionados, à disposição dos interessados, em frente à casa do agente encarregado em mostrá-los. Fui ver o material. Encantei-me! Realmente, os fusquinhas só faltavam falar. Umas gracinhas de encher os olhos e o coração! E quanto a Nicanor? Bom de bico! Lembrei-me de ter lido, num jornal, que, certa vez, numa concentração religiosa, em homenagem ao Padre Cícero, no Ceará, onde apareceram milhares de fiéis místicos e de boa fé, um sujeito, chamado Nicanor, ganhou muito dinheiro, vendendo terrenos no céu. Os crédulos faziam fila para garantir seu quinhão junto ao Senhor. Até os guardas porem fim às vendas, o rendimento foi enorme para o bolso do malandro. O sujeito sumiu, levando uma boa quantia daquelas pessoas simples. Seria o mesmo Nicanor? Questionei-o. Negou. Disse ser correto, nada tinha a ver com a citada pessoa. Mostrou o RG e, também, a documentação completa do Volks, carimbada pelo DETRAN. Sugeriu-me trazer um mecânico de minha confiança para examinar os carros. Convidou-me para dar uma volta, a fim de verificar, por mim mesma, o excelente funcionamento dos motores. Era pegar ou largar. Tinha urgência em vender pelo menos um dos carros. Compromissos inadiáveis... E até propunha uma “promoção”, só naquele dia, de 50% de abatimento na compra de um dos fusquinhas, se a quantia fosse paga no ato da compra, “cash”. Já no dia seguinte, ambos seriam vendidos de acordo com a tabela de preços, relacionada nos jornais. A opção seria a bel-prazer do comprador. E perguntou-me: - Então, em seu caso, interessa-lhe o negócio? Virei-me para ter em mãos toda a quantia pedida: recorri à poupança, fundão, empréstimo em banco. Afinal, consegui. Estava apta a adquirir um dos veículos. À noite, fui fechar a compra. Lá estavam os amorecos. Escolhi um deles. Nicanor entregou-me aos papéis da transação. Examinei-os: em ordem. Liguei o motor: ótimo. Tudo nos lugares: inclusive extintor de incêndio, toca-fitas e o mais necessário. Enfim, possuía o tão sonhado veículo! Nicanor despediu-se, desejou-me felicidades e parabenizou-me pela belíssima aquisição. Apressado, entrou no outro Volks e... escafedeu-se, até os pneus gemeram no adeus. Pensei: “Que tolo! Ia convidá-lo, para juntos, comemorarmos o grande feito... Melhor assim...” Preparava-me para dar a partida no “sonho meu”, quando um homem bateu no vidro, dizendo: – Aonde a senhora pensa que vai? Faça-me o favor de descer desse carro, senão chamo a Polícia. – Acabei de comprá-lo. O que significa isso? – A senhora está roubando meu carro. Desça já. – Negociei-o à vista. Eis os documentos – Falsos, senhora, falsos... Tudo maracutaia! A senhora foi enganada. Um malandro vendeu o que não lhe pertencia. É caso de apropriação indébita. Vamos à Delegacia esclarecer o caso. Chateação! Desapontamento! No posto policial, o caso Nicanor era ocorrência em pauta: falsa identidade, moradia ignorada, furtos, golpes baixos em incautos. Caí no conto do “fusquinha em promoção”... Fiquei com cara de bu... broa. Tristeza! Vi o voar de todas as minhas economias. Pela primeira vez na vida, entrei em dívida com o banco. Tão ingênua! Tão crédula! Tão panaca!
Em meu pequeno apartamento, o barulho do silêncio cada vez me enervava mais. Eu e minha sombra. Ligava rádio, tevê, cantava em voz alta. Fazia-me muita falta a convivência: discutir política, cultura, futebol, conversar, trocar idéias, rir de situações ridículas, analisar assuntos em voga. Como seria bom ter uma companhia: jornais pelo chão, roupas esparramadas, copos em cima dos móveis e até o bate-boca diário por nada. Outra presença, que se preocupasse tão somente comigo. Chegava a desarrumar um armário de roupa, ou de louças, pelo prazer de ver as coisas fora do lugar e ter de arrumá-las novamente. Minha casa era tão certinha: cada coisa no seu lugar e um lugar para cada coisa. Cansava-me essa “ordinha”! Minhas amigas infernizavam-me: –Você está se tornando irritantemente “casa-maníaca”. Cuidado! A solidão é doença sem volta. Não sabemos o porquê de se esconder entre quatro paredes. Sua família não precisa de você: todos encaminhados. No momento, está só. Mire-se num espelho: para sua felicidade, é uma bela mulher, desejável. E, bem-produzida, seria até charmosa. Arrume um companheiro, que preencha o vazio de sua vida. Interesse-se pelo sexo oposto. Coragem! Foi, então, que decidi seguir os conselhos. Por onde começaria? Nada mal um baile da terceira idade. Selecionei um deles: o do SESC, Pompéia. E quem sabe?!? Talvez!!! Decidida, preparei-me. Fui a uma butique sofisticadíssima da Rua Oscar Freire. Comprei um traje chamativo para festa, incluindo todos os aparatos: sapatos, bolsa, bijuterias. Com data e reserva antecipada, no local a ser realizado o evento, no dia marcado, embonequei-me com um corte de cabelo moderno e maquiagem. Fiquei outra: rosto atraente e olhos sedutores, graças aos cílios postiços. Quanto ao vestido, caiu-me como uma luva. Estava uma verdadeira “modelo”, pronta para caçar um encantador pé-de-valsa. As amigas acharam-me um charme. Saí disposta a lançar-me em uma aventura amorosa. Logo na entrada, admirei o tamanho do salão, a orquestra e os pares, animadíssimos. Com o olhar de “Diana Caçadora”, percorri todo o ambiente e parei num canto, onde dois respeitáveis cavalheiros conversavam. Com jeitinho de quem nada quer, aproximei-me. Derrubei minha bolsa, num “sem-querer, querendo”, bem em frente a eles, obrigando-os a pegar e devolvê-la em minhas mãos. Prosa vai, prosa vem, um deles e, depois, outro, convidou-me para dançar. Estava sendo disputadíssima, a ponto de não saber qual dos dois escolher: um impasse! Eis que surge um terceiro pretendente, Marcílio, meu vizinho de apartamento. Afirmou estar encantado em ver-me no baile e que me conhecia de passagem. Admirador incondicional. Que galante! Não me largou mais. Perdi a chance de estreitar conhecimento com os dois senhores tão desfrutáveis... De longe, só flertei com aqueles interessantes cavalheiros. Olhares prolongados, sorrisos desejosos... Volteando o salão com Marcílio, par constante, vi meus fãs escrevendo um bilhete, que me chegou às mãos, através do garçom. No momento da entrega, Marcílio adiantou-se:
pegou, leu apressadamente, colocou-o no bolso,
quando, gentilmente, o impedi, alegando: Ruborizado, devolveu-o, sem nada falar. No bilhete, esses dizeres: “Esperamos ansiosos por você, no final do baile. Porta principal. Até já”. Meu coração acelerou. Tremi de emoção. Fim de festa. Voltei às amigas. Marcílio encaminhou-se em direção ao toalete e desapareceu. Procurei, com o olhar, os outros dois, também, não os vi. Possivelmente, estavam na saída, esperando por mim. Que raiva! Tudo por causa do tal Marcílio. Daí... decepção: vi meus três parceiros de dança saindo pela porta principal, abraçados, íntimos, em atitude de muito carinho, quase aos beijos! O destino havia brincado comigo: Marcílio e os dois outros prováveis pretendentes não passavam de um bando de boiolas.
Depois de longas caminhadas pelas alamedas verdes do parque, com o sol dardejando seus raios ardentes sobre minha cabeça, senti uma sede incontrolável. Procurei um bebedouro, ao longe, avistei-o. Aproximei-me, apertei o botão mágico e... água cristalina, pura, translúcida, surgiu como pequena fonte, bem dentro de minha boca. Que frescura! Que delícia! Uma vez saciada minha “cupidez líqüida”, continuei pressionando o botão, só para ver a água jorrando... jorrando... Dei asas à imaginação: vi um filete de prata, renda preciosa das vestes de um Serafim, contas em gotas do rosário da Virgem. Enfim, um sorvedouro, levando a água, pela tubulação de encontro às grandes corredeiras na imensidade sem fim.
Debruçada em minha janela, vi, em meu jardim, uma borboleta colorida. Tentei seguir seu vôo... Pousou sobre uma bicicleta, que, positivamente, pertencia ao professor de línguas de meus filhos. “Ora!”, pus a mão sobre minha boca. Pensativa, lembrei: hoje é sábado, por que será que o mestre veio a minha casa? Por acaso teria um de meus filhos necessitado de um empurrãozinho extra? Maurício, João, Marta ou Andréia? Curiosa, resolvi procurar a razão de sua vinda. E qual não foi minha surpresa! O professor veio a serviço... não das lições: estava, sim, de namoro ferrado com minha irmã, que morava comigo. Quando? Mas quando poderia suspeitar da existência de tal romance? Sou cega mesmo. Só agora as coisas se esclareceram: tanta dedicação, tanta disponibilidade, horas extras gratuitas, presenças inesperadas, auxílios não solicitados. Meus filhos estavam emocionados! E tudo isso a serviço do amor...
Eram duas da madrugada. Olhos secos, insônia. Bem acordada, não achava posição na cama, já cansada de contar tantas ovelhinhas pulando a cerca! Havia levantado várias vezes para ir ao banheiro e beber água. Até fiz um chá de erva cidreira. Alguma coisa me perturbava. Foi quando ouvi uma batida forte, lá
embaixo, no portão. Minha casa é
assobradada e, pela janela do meu quarto, Bateram outra vez e muitas outras. Alguém estava aqui em minha casa. Quem seria? A hora era inoportuna. Pela insistência das batidas, a pessoa precisava de auxílio. Não seria ladrão, se fosse não ousaria bater. Fantasmas? Não acredito nisso. Fiquei atenta, confesso, com medo. Cobri-me bem, tentei dormir. Aos poucos, foi surgindo o sono, as pálpebras pesando mais e mais. Acordei, já era dia. O sol entrava pelas frestas de minha veneziana. Lembrei-me do jardim. Todos os dias eu o regava antes do sol esquentar. Apressei-me e desci. Foi então que pensei nas batidas do portão. Teriam sido um sonho? Sim, com certeza. Ficou a impressão de que ocorrera um ruído estranho. Abri o portão. Do lado de fora, bem junto dele, uma grande mancha de sangue.
Olho, ora para meus pés, ora para meus dedos... Um ficou na janela, insistindo em ser saliente, contrariando o vestir, o calçar... O tecido furou, bem ali, e o dedão se plantou a admirar o viver. Em minha fantasia, a história infantil: “Quem quer casar com Senhora Baratinha, que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha?” Da janela, toda produzida, encantava o caminhante: Vou cortar o barato do meu dedão enxerido... Munida de linha e agulha, costuro o buraco da meia e... Adeus visor pedante!... Imagino: se fosse uma seta, projetada contra mim e não a deixasse passar? Se fosse um pássaro capturado, desejando voar com outros, muitos outros? Se fosse uma criatura extraterrena, ávida em conhecer o planeta? Com que direito corto-lhe a esperança em meus versos de pé-quebrado?
Ao passar em frente a um aviário, vi e admirei uma linda ave. Na verdade, uma galinha polonesa, raça, que jamais havia visto anteriormente. Rabo comprido, penas negras lustrosas, na cabeça, um topete crespo, lembrando o corte dos “hippies”. Apaixonei-me. Entrei na loja, não regateei o preço. Comprei-a com gaiola, bebedouro e vasilhames de ração. Sem pensar um momento onde, ou como transportá-la, lá fui eu, como carregador, levando minha nova aquisição, tesouro precioso! Certamente, seria meu bichinho de estimação. Após caminhar quarteirões, pois não estava de carro e os de aluguel não aceitavam tal carga, cheguei em casa, com os “bofes de fora”: cãibra nos braços, respiração ofegante. Não contei foi com a reação familiar: desaprovação geral. – Onde colocá-la? Como tratá-la? – E a sujeira? Ficaria uma galinha presa como um passarinho? – Que desatino! Pensou em nós? – Por que não perguntou nossa opinião? Nem parece “mamãe”, sempre tão sensata! Até meu caçulinha, nos seus quatro anos, perguntou: Afinal, cedi a mão à palmatória. Esta espécie de ave doméstica precisa de espaço, aprecia terra. São criadas em gaiolas e alimentadas com ração, exclusivamente as comercializadas para consumo, portanto não se tratava de “minha galinha” especificamente. Não a comprei para panela, mas para ser paparicada, como cachorrinhos, gatinhos e outros animais domésticos. Então, uma idéia brilhante. Minha cunhada é proprietária de uma fazenda. Seu aniversário estava próximo, seria um magnífico presente dar-lhe a galinha polonesa para melhorar seu aviário caseiro. Assim foi feito. Antevia a alegria do bichinho, naquele vasto quintal, regalando-se com o ciscar, o deglutir d'água no córrego, o correr atrás das borboletas, moscas, devorar lagartas, ramas verdes, comer milho fresquinho, debulhado das espigas, e namorar um “galão”. Passados uns tempos, recebi um convite
imperdível. Deliciou minha família! Fomos
convidados para curtir quinze dias de férias na
fazenda: com empregados, alimentação e toda
aquela confortável e prazerosa liberdade, que, só A primeira coisa que fiz foi perguntar da galinha e tive a grata surpresa: vê-la seguida por seis pintinhos, parecidos com ela, de topete e tudo... Era a própria mamãe orgulhosa e feliz. Tão dengosa! Foram dias inesquecíveis, diferentes dos que a gente curte na cidade. Passeios a cavalo, leite fresco, retirado das tetas
das vacas no curral, travessia no ribeirão a
nado, escalar morros para apreciar o nascer e o
pôr-do-sol, fugir das cobras, nos pastos
cobertos pelo alto capim, e chupar laranjas no À noite, no calor claro do fogão à lenha, ouvir histórias sobre pássaros tontos, batendo com o peito nas paredes da sede, gaviões, carregando pintinhos, a onça, que rodeava o portão, os cachorros-do-mato, chupadores de ovos, e as almas do outro mundo, que, perdidas, assustavam os viajantes noturnos... Que fascínio! Não tínhamos vontade de voltar ao burburinho do grande centro. Como era bom estar lá! Intrigantemente, todos os dias, as crianças
perguntavam: – Ora, filhinhos, não falem bobagens. Tudo isso é ciúmes? O dia de regresso chegou. Toda bagagem pronta, e nós, também. Desgosto! No portão da saída, pendurada pelo pescoço, a galinha polonesa!
Quatro horas da madrugada. Um tênue lusco-fusco filtra-se pela veneziana. A porta de meu quarto, apenas encostada, escancara. Acordo. Ainda sonolenta, sinto uma presença. Viro para o lado da janela. Entreabro os olhos e vejo um par de contas brilhantes, que me fita... Sento-me na cama. Já não está lá quem estava. Foge para o corredor. Levanto-me, vou ao banheiro, lavo o rosto. Caminho, lentamente, arrastando os chinelos. Não consigo levantar os pés. Bocejo. Estou tonta de sono, tateando as paredes para encontrar a cozinha. Pois não é que lá está ele, sentado, olhando-me com aqueles olhos de fome? No armário, procuro os enlatados. Na gaveta, o abridor de lata. Ponho o patê, num pratinho, e, ao lado, a tigela de leite. Sua refeição matinal está pronta. Ouço-o, deglutindo o alimento e lambendo o leite. Volto para o meu quentinho. Será que Juliano
entendeu meu blá-blá-blá? Vem a resposta.
Ronronando, amável e agradecido:
Escuro, talvez, luz queimada. Tateio, encontro a porta de meu apartamento. Procuro a chave. Não a encontro no bolso de minha calça. Deve estar dentro da bolsa. Vasculho: nada. Derramo, no chão, os guardados. Encontro-a. Aleluia! Ceguinha, ceguinha, passo a passo, caminho em direção à porta. Com as pontas dos dedos, localizo a fechadura. Coloco a chave no buraquinho adequado. Que coisa! Não quer virar. É hoje! Santos, ajudem-me! Mexo a chave, pra lá, pra cá. Nada. Está encrencada. Finalmente, acerto. A chave gira. Abro a porta, violentamente. Em pé, bem a minha frente, o vizinho, em trajes
menores, com cara de homem mau, com a
bengala suspensa, em riste: Hum!? Oh!!! Porta errada!
Tarde apropriada para estar em casa lendo um bom livro. O barulho da chuva no telhado, qual alfinetes, marcando compasso em teclas de piano, entorpecia-me, trazendo-me estranhos sonhos... Transportei-me a uma praia de areias aveludadas... Manhã ensolarada. O mar calmo ia e vinha, transformando suas mansas ondas, em finíssima renda espumante. Então, vi uma enorme concha rósea. O mar teimava em jogá-la à praia, fazendo-a deslizar pela areia úmida. Depois de admirá-la, como se fosse uma rara jóia de madrepérola, adornada de esmeraldas e rubis brilhantes, cuidadosamente, levei-a para casa. Após retirar toda a argamassa, que a recobria, lavei-a, pendurando-a no varal. Nisso, um estranho morador, um caramujo, esticou sua cabeça para fora de sua toca, a concha, e pôs-se a observar o local, em que se encontrava. Estava amedrontado: sua mansão, sua privacidade, havia sido violada. Compreendendo seu conflito, reconduzi-o ao mar. Feliz, livre, arrastou-se em direção às agitadas ondas, de onde jamais deveria ter sido resgatado. Mas o que está acontecendo? Ora, apenas a chuva, batendo no telhado, como cabeças de alfinete, tamborilando nas teclas do piano...
Ampulhetas girando, lembranças, que desejava esquecer... No recanto silencioso do meu ser, tudo era emoção. Nervosa, aflita, andava pela casa de um lado para outro. Ouvi um toque na porta, quase arranhão. Assustei-me! – Quem está aí? Nada de resposta. Olhei pelo visor: ninguém. A batida, que havia cessado, continuava agora, com insistência. Abri a porta, um pouquinho, para ver quem estava lá. Nisso, um vento fortíssimo escancarou-a. Caí, sentada. Apavorada, olhei ao redor. O ambiente havia se transfigurado. Um clarão ofuscante iluminava a sala, e alegres sombras brincavam diante dos meus olhos. Não conseguia distinguir as figuras. Fiquei muda, traumatizada, sem movimento. O pavor paralisou-me. Os vultos, como entraram, saíram. Sem mensagens! Fantasmas? Almas perdidas no espaço? Talvez, quisessem mostrar que, além desta vida, houvesse “Algo” para crer. Tempo não pára, coração não acelera... Há momentos, em que se procuram explicações, além do humano... Alucinações?
Desde que o circo chegou à vila, seus moradores se modificaram. O ritmo pacato daquela gente sofreu um impacto emocional. Nunca haviam visto coisa mais surpreendente: artistas balançarem em trapézios; acrobacias em bicicletas; equilíbrios em arame; mágicos transformando lenços em borboletas; pombas, saindo de cartolas, e pratos girando sobre varas! As crianças foram as primeiras a encantarem-se. Nada de escola e afazeres, queriam só ver leões, macacos e aqueles malabaristas famosos. Moças e rapazes acharam a maior aventura imitar um circense: pôr os pés no mundo, viajando, subir em trampolins, equilibrar em cordas bambas e, acima de tudo, ter a satisfação de ganhar dinheiro. Até os homens e mulheres maduros passaram a ver o serviço normal como uma rotina cansativa: bom mesmo era ser palhaço e assistir às representações. E agora, mané? Ninguém queria mover uma palha, só se divertir. Assim foi, até o dia em que o circo partiu para exibições em outras paragens. O espetáculo tinha de continuar. Os capiaus fizeram barricadas para impedir sua saída. Mas os armadores dessa fantasia foram embora, apesar dos rogos da população! Muito tempo depois, os habitantes daquele vilarejo ainda se lembravam, com saudade, daqueles dias em que foram envolvidos pela magia da diversão sonhada.
Nasceu em Nambu. Tinha um cacoete, antes de
dizer qualquer coisa, fechava a boca, fazia um
biquinho e emitia um som “chi-i-i”. Era
considerado um tapado, pois tinha dificuldade
em aprender. Por onde passava, os moleques
caçoando gritavam: Apelido que pegou. Apesar de limítrofe, Chii tinha bom coração: não ofendia e protegia os animais do local, onde residia, uma tapera (cedida por alguma alma caridosa). Levava os bichos abandonados, tratando-os, se estivessem doentes, repartindo, com eles, o pouco de comida que tinha. Assim, qualquer animal pequeno, ou de grande porte, encontrava guarida em seu barraco. Populares, cientes desse procedimento, passaram a auxiliá-lo, cercando-o dos cuidados, de que são merecedores, os “pobres de espírito”. Desse modo, Chii tornou-se quase uma lenda, um exemplo de generosidade e amor.
Ao descer do ônibus, notei uma fisionomia familiar. Parei e encarei-a. Porém tive quase certeza de nunca tê-la encontrado. Recordava-me uma gravura antiga, que me estarreceu um dia, ou, talvez, um retrato, já amarelecido pelo tempo. Céus! Quem seria? Olhei-a, fixamente, outra vez. Senti um arrepio. Oh! Sim! Traços semelhantes aos de uma querida falecida amiga. Por brincadeira, sempre dizia: – Se for antes de você, voltarei para vê-la. Sem dúvida, era ela, cumprindo o prometido. Do susto, veio a saudade...
Nas tardes quentes de verão, meu irmão, mais velho, e seus amigos iam nadar na Cascatinha. Que lugar encantador! O riozinho, jamais caudaloso, a não ser na época das grandes chuvas, vinha de longe, das montanhas, calmo, calmo e nunca profundo. Quando chegava à Cascatinha (assim o povo a chamava), formava uma reentrância, ou lagoa serena, antes de desaguar numa pedreira, mudando seu ritmo pacífico para uma correnteza, não, amedrontadora. Rolava pela pedra com o barulho e a velocidade de uma não alta, nem perigosa cachoeira, para o divertimento da garotada local. Enquanto as crianças se divertiam com o chuveiro natural de água abaixo, os meninos maiores nadavam cachorrinho, na bacia formada pelo rio acima. Um dia, meu irmão resolveu ensinar-me a nadar. Mas, para a maninha, a formação do tanque, rio acima, era bem funda. Então, solucionou o problema: amarrou uma corda, em árvores de um lado e do outro da lagoa, e colocou-me um cinto, preso a uma argola móvel, firme ao fio, que atravessava a água. Ele, excelente nadador, levava-me nas primeiras braçadas, dando-me coragem para ir à frente. Esse treino durou várias lições, até o dia em que me livrei das proteções e o acompanhei como aplicada aprendiz. Nadei sem medo, com confiança. Cheguei, mesmo, a ser tão boa, que, numa aposta, consegui vencê-lo. Nesse dia, recebi o título de “Supernadadora mirim”.
Vivo numa geração, que não é a minha. Sinto uma vontade imensa de adaptar-me aos tempos atuais, compreender certos fatos desta globalização perturbadora. O mundo encolheu, os valores mudaram... Sou uma intrusa no agir do dia-a-dia. Qualquer nível social sofre o impacto das informações galopantes, atingindo todos os setores do movimento mundial. É a comunicação, gerando procedimentos de consumismo exagerado... Assim refletindo, liguei a tevê: vi uma dona em “trajes sumários”, realçando as pernas com meias pretas, rendadas 3/8, presas às coxas com ligas ajustadas. Essa garota-modelo fazia enorme sucesso, mas era a primeira vez, que a via exibindo-se. Admirei sua “performance” original, mas a mercadoria (nesse caso, as meias), que tentava lançar como moda “up”, ridícula, além de incômoda, parecia-me imprópria para a estação. Logo mais, abri os jornais: uma passeata de aposentadas fazia protesto contra a corrupção diante da Câmara Municipal. Todas usavam as tais meias. “Até que há gente com o desatino de acomodar-se nessa peça horrorosa”, pensei. Esqueci a reportagem e... numa dessas saídas para o supermercado, passei diante de uma banca de jornal. Não é que havia um grande painel com a “tal”, vestida apenas com um bois de plume*, e, nas pernas, mostrando, em destaque, as rendadinhas transparentes?! Gente, o que aconteceu comigo? Desta vez, achei uma riqueza as pretinhas e dignas de fazer parte do vestuário de uma mulher elegante (nesse caso, eu). Eram bem caras, mas valiam como acessório em uma toalete finíssima... Imaginei: faria o maior sucesso com aquelas lindinhas, num baile da terceira idade! Meus parceiros ficariam babados... Até desmaiariam se me vissem, também, com o chicote e a máscara! Então, pedi ao jornaleiro: O vendedor olhou-me, com certa estranheza: – “Tudo?!” – exclamei aos gritos, – tudo mesmo? E mais que depressa, adquiri o precioso material
escrito e documentado. Com a valiosíssima
revista, debaixo do braço, corri à loja de artigos
femininos. Queria, desesperadamente, ser
proprietária daquela maravilhosa, chamativa e
atraente meia rendada, para sentir-me como a
própria coqueluche da mídia. * bois de plume (em francês) – bosque de plumas
Chovia “gatos e cachorros”. O guarda-chuva furado vazava os pingos. Ainda teria de enfrentar uma escadaria escorregadiça para chegar em casa. Escalei os degraus com extremo cuidado. Porém, bem no meio da passagem, um bêbado, com uma garrafa na mão, interrompeu meus passos apressados, pedindo-me um trocado para comprar um pedaço de pão. Amedrontada, enfiei quase o braço todo dentro da bolsa, mas, em vez de uma moeda, dei-lhe minha fivela. Corri. Enganei-me. Bolas!!! O que quero mesmo é fugir desse indivíduo, bêbado e mal-encarado!
Subia as escadas, meus pés escorregavam. O relógio de pulso saltou e caiu sobre a areia. Felizmente, não quebrou, pois tombou sobre um sabugo macio, que o aparou como um suporte aveludado. Que aventura! De um deslizar, surgiram tantas surpresas! Onde deixei minha caneta para registrar o ocorrido? Ora, vejam só, perdi, também, meu anel!!!
Após oito meses de uma vida conjugal conflitante, Denise e Rafael ainda continuavam juntos. Ambos se mordiam de ciúmes e, por um “dá-cá-toma-lá”, brigavam, acusavam-se e chegavam até as vias de fato, esbofeteando-se. Dizia o marido: Ela retrucava: Era aquele brigueiro, embora, quando reconciliados, vivessem delícias celestiais. Certo dia, ambos, em horários diferentes, receberam um bilhete. Para Rafael: “Se você quiser surpreender sua esposa com um cavalheiro, basta ir, amanhã, entre dez e doze horas, ao Hotel Sheraton e perguntar pelo casal Anderson”. Para Denise: “Se você quiser ver o seu marido, amanhã, com uma outra, vá ao Hotel Sheraton, entre dez e doze horas e pergunte pelo casal Anderson”. Ficaram chocados. Tentaram não levar a sério a mensagem, que, afinal, era anônima. Mas, no dia seguinte, cada um arrumou uma desculpa a fim de estar livre das dez às doze. Denise chegou ao Sheraton, perguntou pelo casal Anderson e encaminhou-se para a suíte indicada. Rafael a seguiu, sem ser visto. Denise bateu à porta dos Anderson: o casal era completamente estranho. Rafael chegou. Ambos se entreolharam, pasmos diante da trama.
Tarde ensolarada. Jardim paradisíaco. Plantas exuberantes. Riachos cristalinos. Flores exóticas, perfumadas, coloridas, sedutoras. Pedras valiosas. Tesouros recônditos! Vivendo nessa preciosa dádiva celestial de natureza pródiga, um REI, nascido em berço esplêndido. Adormecido, gozava o que lhe fora ofertado pelos céus... Embriagado, por todas essas benesses, sem maldade, sua única visão: o BELO. No entanto, de olhos fixos no crepúsculo de verão, colorido de verde, amarelo, branco, azul, um gigante, Adão, cobiçava toda a maravilha daquele Éden. Possuía poder, ambição, orgulho, potência destruidora. Tudo pronto para agir. Escondido, em sua insignificância, sem voz, nem vez, um rato faminto, por justiça, avaliava as ocorrências, clamava aos ventos, mas seu fraco grito não era ouvido. Então, desejou roer as ricas vestes do rei, a fim de despertá-lo para a verdade e ferir, com pedras, as andanças de Adão, tentando estancar seus instintos devastadores. O que fazer? Qual arma usaria nessa luta desigual? Sabia. O rato é um ser desprezível, rejeitado, perseguido, desrespeitado. Era necessário fazer-se ouvir. Como? Em grupo. Várias vezes reclamando, propondo soluções, destruindo o mal, protegendo o bem. Poderia um rato transformar-se em Adão, ou Rei? A corrupção e a destruição só seriam abafadas, quando forças unidas tomassem consciência do viver a fraternidade. Só assim, a impunidade dos grandes cairia por terra. Os pequenos, então, dominariam o mundo. Utopia?
Era uma vez, um jardim esplendoroso, um pedacinho do Paraíso, transportado à Terra, para deliciar os corações sensíveis. Todinho plantado com flores perfumadas, coloridas (rosas, cravos, jasmins, camélias, gerânios, lírios, margaridas, violetas, amoresperfeitos, miosótis), com o fito de reprimir a torpeza dos homens e, também, ensinar-lhes pensamentos elevados, gestos gentis. No dizer do poeta: “Foi o amor que o semeou”. Todos os dias, ao amanhecer, uma linda jovem vinha regar as plantas e, ali, permanecia horas, até o sol se pôr. “Com a névoa, como manto, a fada da madrugada aumenta a graça e o encanto daquela rosa orvalhada”. Os passantes, ao vê-la, elogiavam, referindo-se à exuberância magnífica daquele impacto dadivoso da natureza. Um dia, porém, o espírito da inveja, incorporado em lagartas, formigas, pulgões e outros insetos malignos, sem ser convidado, ultrapassou os gradis do jardim, invadindo canteiros, pisoteando as plantas rasteiras e, estouvadamente, arrancou-as, devorando, ou jogando-as ao chão, para que morressem. A fada da madrugada, regressando ao nascer do sol, viu e lamentou aquela destruição. Triste, voou, com diáfanas asas, para o “Reino do Bem”, onde se cultiva, como flores, o Belo, a Verdade e a Harmonia, tesouros indispensáveis para encontrar o caminho da felicidade e a chave da compreensão.
- História Infantil - Era uma vez um urso. Depois de passar três estações, primavera, verão e outono, gozando as delícias dos climas tépidos, percebeu o inverno aproximar-se. Procurou um local para hibernar, durante os gélidos dias que se seguiriam. Bem alimentado, durante meses, armazenou resistência física suficiente, para dormir em paz. Encontrou uma toca ideal, profunda, segura. Ajeitou-se e adormeceu por longas e longas noites. Quando acordou, surpresa! Estava fechada a entrada da toca. Como? Havia sido coberta por um material duro. Estava aprisionado. Com esforço, abriu uma cavidade, precisando usar muita energia e habilidade para poder sair. Uma vez livre, corpo inteiro, olhou a seu redor: não foi a vastidão gelada, que enxergou, nem flores, rios ou mar... Enquanto nosso urso hibernava, construíram uma fábrica de material pesado, bem ali, em cima de sua toca. Então, espantado, viu estranhas criaturas a gesticular, emitindo urros dissonantes. Aqueles homúnculos correram em sua direção, tentando explicar que seu aspecto bizarro era inadequado ao serviço e à temperatura ambiente. Era impróprio a um operário apresentar-se com barba e cabelo por fazer e um agasalho peludo e malcheiroso, a bem da verdade, fedia a urso. Vamos lá! Os dias se passaram e todos se acostumaram com aquele cabeludo companheiro. Devia ser surdo-mudo. Pois só compreendia gestos, expressando-se numa linguagem animal: – Hu-u-u! Contudo executava um serviço perfeito, principalmente, o de carregar pesos. Com paciência, ensinaram-lhe a movimentar máquinas. O trabalho era rotineiro, e o urso aprendeu sim, era até fácil. Por motivos óbvios, um dia, a fábrica fechou... Justo agora que o urso está convencido de ser humano. Puseram o “coitado” para fora. Não, na rua, mas, no gelo. E agora? Como resgatar sua selvageria? Caminhou rumo ao mar. De longe, viu seres parecidos com ele, até na cor branca e pêlos. Resolveu aproximar-se. Porém aquele grupo brincalhão e amistoso entre eles, quando o viu, assustou-se e começou a observá-lo. Cheirando o ar, disseram: Assim o fizeram. Foram de unhadas e dentadas, atacando-o... Até os pequeninos o maltrataram, arrancando seus pêlos e dando-lhe rasteiras para derrubá-lo. Amedrontado, fugiu... E agora, aonde ir? Avistou, então, uma aldeia de esquimós. Achegou-se, mas que estranho! Apesar de seu sorriso, as pessoas de lá, munidas de pedras e porretes, foram ao seu encontro, quase o matando de tanta pancada... Conseguiu escapar. Todo dolorido continuou sua andança. Estava cansado, faminto, sem ninguém para socorrê-lo... Onde estavam os amigos, que o alimentavam, sem que pedisse? Ó desdita! O melhor, mesmo, seria dormir para esquecer... Viu uma pedreira, bem perto do mar, encaminhando-se para ela. Recostou-se e adormeceu. Sonhou. Que lindo sonho! Era um urso e, por sua própria natureza, pescava, acasalava, recolhendo-se em uma gostosa toca para hibernar no inverno. Como era feliz... Nada como ser aquilo que a natureza lhe havia dado... Ao acordar, o urso sentiu-se “urso” novamente, retornando às origens de sua vida selvagem. Acabou a história, quem quiser que conte outra...
“Velho carrilhão de vidas! Veio de Paris, no princípio do século passado. Foi presenteado a meu pai, por ocasião de seu casamento, em 1904. A caixa, trabalho artesanal francês, e a máquina feita por relojoeiros suíços. O carrilhão é uma peça preciosa, digna dos melhores museus do mundo. Como meu bisavô conseguiu tal raridade? Nunca o soube, sua história perdeu-se no espaço. O fato é que, por direito hereditário, passou a fazer parte do patrimônio de minha família e, atualmente, sou sua única proprietária. Há poucos anos, trouxe o relógio da casa de meus pais. Muito antigo, não é de se admirar que tresande um pouco. Possui uma corda para andar os ponteiros e outra, para bater horas. O carrilhão badala a seu bel-prazer, assim como, inexplicavelmente, ora adianta, ora atrasa. Na verdade, essa defasagem não me aborrece. Há muito desanimei de querer as coisas deste mundo “cer-ti-nhas”... Seu bater suave é compassado, e o som me transporta para as noites longínquas da infância. Às vezes, tenho a ilusão de ouvir fundo o murmúrio de vozes dos que se foram... Comparo-o a uma sábia coruja, que segue passos, vigia e observa, tranqüila, no correr dos dias. Marca instantes de envolvimento familiar: risos, choros, participando de meu cotidiano. Seus badalos acompanham as turbulências de um horário a seguir. Por muitos momentos, imagino ter alma, transpirar emoção. Várias foram as ocasiões importantes, em que manifestou sua presença: badalava alto ao principiar um evento e, ao seu término, parava também. No dia do falecimento do chefe da família, o relógio marcou a saída do féretro com um triste bater de horas e, por muito tempo, silenciou... Malgrado as tentativas dos relojoeiros para vê-lo funcionar! Depois, sem mais esta, pôs-se a movimentar. Ó amigo! Certamente, mãos cheias de magia o esculpiram, pois, no seu repicar musical, pulsam sentimentos humanos...
Quando pequena, na sala de visita de casa, tinha um grande tapete floral. Lindo de morrer! Recomendavam todo cuidado com ele: não - pisá-lo, com sapatos sujos; não passear de bicicleta, em cima dele; não comer, sobre ele... Não, não, não! Eram tantos os recados com “não”, que comecei a ter medo. Talvez, fosse um tapete mágico, voador, feito de um tecido especial. Todos diziam que era caríssimo, confeccionado à mão, por mulheres tecelãs de um país distante, muito além do mar, que se chamava Pérsia. Na minha imaginação infantil, deveria ser a terra dos gênios do bem e do mal, dos gigantes, das fadas e feiticeiras, que comiam criancinhas... Que horror! Mas, assim mesmo, o tapete me fascinava! Parecia um campo de flores coloridas, com pássaros paradisíacos... Pena que só podia apreciá-lo sem tirar, sobre ele, uma soneca, ou levar minhas bonecas para passear, naqueles bosques tão floridos e verdejantes... Quando tinha de atravessar a sala, ia bem devagarzinho, andando só na parte do soalho, com receio de estragá-lo. Mas, um dia, resolveram passar sinteco no chão e chamaram quatro homens para embrulhar e transportar o tapete para um outro lugar da casa. Fiquei de olho, perto da porta de saída. Qualquer coisa, poderia correr para a rua e me defender. Até a polícia chamaria... Mas que decepção! Debaixo do tapete, não havia personagens estranhos, como eu esperava... Só pó!!! “Não era feito de
Nem bem surge o rubro da alvorada, nem bem se aquieta a noite, novamente, calmas, esperadas gotas de chuva, após prolongada estiagem. Na vegetação, escorrega o suor abençoado: chuva, nuvens, que choram graças sobre a natureza sedenta. Da janela descortina: terra molhada, com brilho de aquarela! Como é bom ver o solo revivendo... Olho para meu jardim. Noto a solidão da flor azul única, diferente, sem quem, sem quê, sem porquê... Então, sinto-me canoa sem rumo, folha seca na enxurrada da calçada... Confirmo para mim mesma: sou uma partícula mínima, na essência de um Todo.
Quando eu soube de seus atos grandiosos, pensei: “Pai de Todos” seria uma qualidade inerente a ele, tão generoso, tão magnânimo... Seu astral sempre aberto, disposto a uma ação altruísta. Para retratá-lo de leve, lembro-me de um fato ocorrido, num dia gelado de inverno, em minha cidade natal. Um miserável, apenas, protegido por um saco, tiritava de frio... Ao vê-lo, esse meu amigo – que prefiro manter no anonimato – não teve dúvida: retirou seu próprio agasalho, pondo-o nas costas do mendigo. Esse não teve palavras a dizer, senão essas: – Que um MURO o proteja de todo mal, e que sua vida seja protegida, sempre, da CARTOLA maligna e disfarçada do Diabo.
Sonhava ter mais idade para poder me pintar e sair à rua, como boneca produzida. Aproveitando a ida de uma prima a Paris, encomendei um estojo completo de maquiagem facial. Dei até o endereço onde encontrá-lo: na “Galerie Lafayette”. Blush com pincel, erase para os olhos, batom e “poudre” seriam o suficiente. Ficaria radiante, se atendesse meu pedido. Aguardei, ansiosa... No dia de seu retorno, fiz-lhe uma visitinha
de boas-vindas. Como alguém que nada quer,
perguntei-lhe: – Sim, por sinal, está aqui na frasqueira, vou entregar-lhe. Saltei de alegria interior... Agradeci comovida, Em seguida, retirei-me, pois não via a hora de experimentar todos aqueles produtos maravilhosos! No meu quarto, em frente ao espelho, após retirar os invólucros da encomenda, iniciei minha transformação: agora, top-model! Ninguém vai me reconhecer: vou tornar-me bela – como nas histórias, que ouço –, uma donzela encantadora. Todos me olharão admirados, e os garotos do colégio, certamente, vão cair aos meus pés e pedirão para namorar-me! Coloquei meu vestido “de ver Deus” – de ir à missa aos domingos –, meu melhor sapato, penteei meus cabelos para cima, parecendo mais velha, e vamos começar... Pintei meus olhos, com rímel e delineador; minhas sobrancelhas, com lápis apropriado; passei pó-de-arroz; com pincel e rouge, duas bolas nas faces, e batom, difícil, não contornou os lábios, ficou acima e abaixo, borrou um tanto, falta de prática!. Lembrei-me da canção: “Marina, morena Marina, você se pintou…” Ah! Deixe pra lá. Estou linda! É o que importa. Para que se preocupar? Agora, vou mostrar-me. Vejamos a reação. Meus irmãos estavam tomando lanche na copa. Faria minha aparição espetacular... Eles se admirariam, dizendo: “O que aconteceu com nossa maninha? A fada madrinha, com sua varinha de condão, esteve aqui? Quando será o grande baile do príncipe casadoiro?” Então, apareci, como uma artista de palco, toda pimpona... Que decepção!... – O que aconteceu? – perguntaram –, você vai trabalhar no circo como palhaço? E começaram a rir, às gargalhadas. Correndo, voltei ao quarto, retirei meu traje de festa e sapatos, lavei o rosto com sabão, para retirar a maquiagem, retornando à copa. “Esses meninos não entendem mesmo – pensei –, nem sabem apreciar o chique de uma dama…”
Papai era compulsivo a chocolates, sua preferência notória! Porém tinha uma comparsa, eu, sua filhinha caçula. Embora esse confeito me fosse absolutamente nocivo, dava-me tremendas dores de barriga, até sonhava com ele e com seu gostinho delicioso. Sempre que surgia uma oportunidade, devorava-o a fartar-me, pois, mesmo sem óculos de aumento, minha gula era maior do que meus olhos. Daí, qualquer chocolate em casa era trancado a sete chaves e distribuído, em unidades, após as refeições, ou em horário certo, de acordo com o relógio caseiro, minha mãe. Papai e meus irmãos conformavam-se com essas determinações, menos eu. Sentia até as pontas dos cabelos se arrepiarem, quando todos recebiam suas porções, igualmente, divididas. Achava-me injustiçada e queria sempre um pouco mais. Para mim, tablete de chocolate era comida e não, uma simples sobremesa agradável ao paladar. Veio o aniversário de papai. Seus companheiros de trabalho enviaram-lhe uma enorme caixa de bombons. Meu pai, ao recebê-la, sentiu-se feliz e realizado. Antes que mamãe soubesse e meus irmãos tomassem conhecimento do magnífico regalo, papai resolveu escondê-lo para poder saborear sozinho e na quantidade desejada. Não notou, porém, que havia uma espiã. Pela fresta da porta, segui com os olhos os seus passos. Papai, pé ante pé, quase caindo ao tropeçar no terceiro degrau – o taco estava solto –, dirigiu-se da escada ao seu quarto. Abriu o armário, colocou a maravilhosa caixa, na parte de cima, debaixo de umas revistas velhas. Olhou para trás, para verificar se havia sido seguido, e sossegou. Ninguém à vista. Saiu do dormitório, fechou a porta e desceu. O esconderijo estava perfeito. – Ouvi alguém batendo na porta da rua, você atendeu? - perguntou-lhe mamãe. – Sim, era um telegrama de amigos - riu, baixinho. – Já o guardei - respondeu papai. “Que bom! Segredo mantido. Desta vez, vou comer bombons até…”, pensou. Mas a pequerrucha estava atenta. Vi muito bem onde papai pôs o presente. E, passo a passo, devagarzinho, silenciosamente, fui para cima, abri com cuidado a porta do quarto, fechando-a em seguida. Arrastei uma cadeira para alcançar a parte alta do armário e puxei a caixa, que foi ao chão, com todas as revistas. Para a minha sorte, o barulho não foi ouvido. Hum! Que gostoso! Fui logo pondo dois bombons na boca. Mas eram de cereja com licor. Minha roupa se sujou toda e, também, o tapete! Querendo corrigir o mal-feito, esfreguei as mãos, na camiseta e no carpete. Puxa vida! A tentativa de limpeza foi pior do que a sujeira. Ficou uma caca! O melhor seria fugir e me fazer de inocente: “Nada vi, nada sei”. Para o meu maior temor, ao correr, pisei em vários bombons, formando uma pasta molhada pelo chão. Andei ligeirinha. Para fora, já! Ao abrir a porta: MAMÃE!!!
Meu galante cavaleiro, Quando o vi, pela primeira vez, em seu uniforme de CPOR, cavalgando um possante tordilho, apaixonei-me. Senti as batidas de meu coração se acelerarem e minha vista ofuscar-se. Não poderia, jamais, traduzir aquele momento tão imaginado na minha fantasia. Como não havíamos sido apresentados “ainda”, sugiro: poderíamos nos encontrar? Quando? Onde? No país do irreal? No mesmo lugar, onde a esperança e o amor andam juntos? No momento, caminho pelos verdes anos e você, homem feito. Embora muito jovem, meus sentimentos são maduros... Você já viu uma chuva transformar-se em gotas de prata? A luminosidade de uma vela ser ofuscante como sol? Assim aconteceu quando o vi... Você, um sonho, tornou-se. “Eu” e meu pensamento... Aguardarei sua resposta dentro de alguns anos. Cheia de amor,
Adamo sentia-se cansado. Tivera um dia de cão, no escritório, excesso de trabalho. Ao chegar em casa, após tomar um copo de leite quente, encaminhou-se para o seu quarto. As crianças, dois filhos, ainda não haviam chegado da escola, e sua mulher teria saído para as intermináveis compras diárias. O silêncio fora pescado! Para alguém que necessitava repousar era ideal. Como seria bom se pudesse se ver livre dos incômodos ruídos e dos danos, que eles provocam. Sua cama tão convidativa. Soprou o silêncio, com a intenção inconsciente de libertar-se dos estresses. Cochilar, só por um pouco, e acordar com toda aquela energia, que lhe era peculiar. Adamo recostou-se em seu travesseiro, procurou costurar o sono. Fechou os olhos, quase dormiu. Porém, um pesadelo. Sua preocupação aumentava, na proporção em que pedacinhos do barulho penetravam no ambiente de seu quarto: buzinas disparavam, sirenes apitavam, máquinas rangiam, motores rondavam, construções batucavam, pessoas gritavam, músicas, apitos... Sons. Onde o sossego, a calma, a paz? Vozes? Pressão, impressão? Vida? Consciente, inconsciente? Sim, Voz do silêncio!
Sonhava, como uma criança, possuir uma bicicleta. Não qualquer bicicleta, mas, uma ergométrica. Seria maravilhoso fazer exercício sem sair de casa. Pedalar, pedalar... E a barriguinha ir-se e as gordurinhas excedentes do corpo serem consumidas, sem risco de assaltos, atropelamentos, observações fatigantes, suor à vista, ou gracejos desagradáveis: - Aí, velhinha! Vai a alguma maratona? Quando recebi a compra, pela primeira vez, caí na realidade: o aparelho era qualquer coisa “descomunal” para um apartamento pequeno, além de ser uma peça nada decorativa. Enfim, um trambolho! Onde colocá-la? Na sala? Só se fosse no lugar da TV. E esta, onde ficaria? No banheiro? Cheio de peças necessárias à higiene e outras “cositas más”. Portanto nem pensar! Não haveria espaço. No quarto? Ora, a cama já ocupava todo este recanto de sonecas, “paraíso da preguiça”. Na cozinha? Que disparate! É tão estreita! Mal dá para as refeições. Quando entra uma pessoa, a outra tem que sair. Já sei! Na área de serviço! Nos dias de lavar roupa, arrasto a “bicicletinha” para dentro, até que os varais estejam livres. Então, sonho meu, volte pra lá, no ventinho... Assim foi feito. Tudo certo! Um pouco desconfortável. Paciência! Já estou acostumada a ajeitar-me “ajustadinha”. Às vezes, isso é bom... Ma-li-ci-osa! Na manhã seguinte, bem cedo, toda vestida de Peguei um bom livro de contos, um tanto erótico: “A Vida como a Vida é”, de Paulo Figueiredo. Conhece? Só é possível lê-lo fechando um dos olhos, para que os dois não se escandalizem. Preparei-me e iniciei o treino. Os primeiros vinte minutos, conforme as instruções, são para circulação e os outros quarenta, para tornar-se elegante. Enquanto movimentava as pernas, pretendia deliciar-me com as narrativas engraçadas e picantes do Paulo. Mas o prazer durou pouco. A cabeça, acompanhando o corpo, inclinava-se e fiquei tonta, talvez, por ter labirintite crônica. Que pena! Parei a leitura e concentrei-me, apenas no exercício. Após alguns minutos, comecei a achar o movimento rotineiro, monótono. Aí, meus pensamentos entraram em ação. A princípio, recitei poemas, lembrei fatos agradáveis, depois, soltei os fantasmas dos pagamentos, dos compromissos sociais, do dia-a-dia preocupante. Cheguem pra lá! Agora é só saúde! Nada de aborrecimentos! Que coisa! Será que não se pode exercitar sem a presença do pesado da vida? Bolas! Os minutos não passavam, o que era bom deixou de ser. Tudo isso no primeiro dia de experiência esportiva caseira. O que seria depois? Sabia: para o pedalar produzir efeito, é necessário continuidade. Não haveria resultado positivo sem persistência. Comprei um sonho, ou um pesadelo? Veremos com o correr dos dias. Infelizmente, sempre a mesma coisa: problema de espaço, monotonia, falta de estímulo, pensamentos negativos. E só! A tal de ergométrica, uma chateação! Agüentei um semana e chega. Antes que sofra dos nervos, seria preferível o prejuízo: vi o dinheiro da compra vo-an-do! Decidi. Na calada da noite, pé ante pé, lembrando-me do filme Pantera Cor-de-Rosa, com David Niven, pus, debaixo daquele monstro, que me perturbava, um tapete e arrastei-o pelo corredor afora, até o elevador, descendo no térreo. Verifiquei se havia alguém à vista: o guarda, como bom segurança, roncava. Abri a porta da rua e, com toda a minha musculatura, carreguei-a, colocando-a em frente à lixeira do edifício. Silenciosamente, regressei. O vigia dormia ainda. Com o tapete nas mãos, subi pelo elevador. Pronto! Sã e salva, livre daquele instrumento de suplício. No dia seguinte, espalhou-se a novidade: uma bicicleta ergométrica novinha fora esquecida na calçada! Quem seria o dono? Por acaso, roubada? Polícia interrogando... Nada sei. Ignoro. E tenho raiva de quem sabe! Costumo respeitar a “lei do silêncio”!
E.T.s!!! Nas minhas lembranças, resgate da memória infantil, ouço o bimbalhar da chuva no telhado. Para mim, um brinquedo cheio de coisas barulhentas. Imaginava ser um E.T. verde, a me amedrontar, com seu esquisito tamborilar de dedos.
Certo dia, receberam um bilhete anônimo. Para Gabriel: “Sua namoradinha estará amanhã na Sorveteria Kidoce, às três horas, com um novo fã. Um amigo.” Para Andréia: “Seu namorado está apaixonado por outra moça. Se estiver interessada em vê-los, esteja amanhã, às três horas, na Sorveteria Kidoce. Uma amiga.” Ambos, magoados, ficaram remoendo de despeito, de dúvida, de dor. Sentiam-se subestimados, postos de lado, traídos. Assim, sem que o outro soubesse, resolveram “pôr tudo em pratos limpos”. Andréia não foi à aula, Gabriel não foi ao escritório, estando, em frente à Sorveteria Kidoce, às três horas. Por ser um dia comum de trabalho, e, além disso, muito frio, a sorveteria estava vazia. Apareceram dois fregueses: Andréia e Gabriel. Entreolharam-se desapontados, sem assunto...
“Não sabe o caminho Lívia, ao término de um fim de tarde exaustivo, caminhava, lentamente, de volta ao lar. Trazia em suas mãos um pequeno pacote, que lhe fora entregue por um garoto desconhecido. Sem coragem de abri-lo, tentava adivinhar seu conteúdo. Um aroma agradavelmente perfumado exalava do embrulho. Amarrava-o, um laço preso a um botão vermelho. Sem identidade, ou bilhete. Rasgou um tanto do papel, que o envolvia. Viu, então, o tecido de uma luva, sua luva, cujo par havia perdido, ou esquecido, em certo local, no momento em que toda presença se fez ausente. Na pátina do tempo, espelho da vida: janela, portas abertas refletem a realidade fria. Luva sem par. Sonho limitado... Lá, bem no fundo, resto de esperança!
Bem quieta, olhava aquele ambiente tão diferente daquele em que estava habituada a viver. Vermelha de raiva, queria tomar uma atitude de defesa, sem saber o que fazer, ou o que dizer. Pela força, estava ali imóvel, amarrada. Calei-me, desconfiada. O que desejavam de mim? Ninguém presente se manifestava, nem para me defender, nem para me atacar. Com o corpo a tremer, nada fazia. Foi quando a polícia chegou, com grande estardalhaço. Os assaltantes fugiram.
Olhando para um cofre fechado, sentia-me a própria dama-da-noite. Quisera ter olhos de gato para ver no escuro. Que desdita! Como nozes varridas pela vassoura, tentava traduzir, com a escrita de minha caneta, o que se passava naquela escuridão: mistérios? Barulho? O que o momento desejava de mim?
Maria, em vermelho, lidava com um elástico fustigando a areia. Rabiscos foram desenhados com a aparência de polpa de fruta comestível. Mas quem seria capaz de decifrar o que ela tentou fazer? Eram, simplesmente, indecifráveis.
Pela janela de sua sala, um professor de pijama, em pleno sábado, via o belíssimo arco-íris, que atravessava o céu de um lado a outro. “Se eu fosse um mágico, gostaria de poder usar minha bicicleta para pedalar sobre tão lindas cores, refletidas na azulada abóbada celestial, após a tempestade.” “Mas resta um recurso: posso sonhar, imaginar e ser um fantástico caminhante nas nuvens coloridas.”
Arrumei as malas. Pensei na estrada de terra barrenta com pedregulhos soltos. Parti para as férias, após tantos dias de trabalho estressante, sempre apressada, a vigiar o relógio com horas aceleradas. Fui convidada para passar uma semana num sítio, ao lado de uma reserva ecológica, onde havia: micos-leões dourados, bichos-preguiça, quatis, vários pássaros raros e, naturalmente, cobras, lagartos, escorpiões, aranhas, taturanas, mosquitos mais e mais... Sossego? Iria encontrar, muito! Armazenaria saúde e paz, regressando à capital com disposição física e mental. E lá fui eu, dirigindo meu velho fusca. Parecia uma perereca, saltando buracos pelo caminho rústico, lugar, em que passavam carros de boi, apinhados de cestos enormes. O carreiro levava-os, tranqüilamente, sonolento, acompanhando o ritmo dos animais: cena própria da vida campestre, no bojo de uma tarde quente de céu límpido. Após recepção carinhosa, por parte dos amigos, instalei-me, confortavelmente, refresquei-me com boa ducha, participei de excelente refeição, feita, especialmente, em minha homenagem. E fui descansar. No dia seguinte, calorento, aproveitei para conhecer os arredores. Sempre tive espírito pioneiro, uma curiosidade inata em descobrir lugares sozinha. Andar, no matagal, atraía-me. Fui informada da existência de uma cascata no meio da vegetação. Vê-la de perto, seria uma opção para esse primeiro dia campal. Entrei mata adentro. Caipira da capital, fui curtindo a beleza do verde: árvores gigantescas, pássaros canoros, zumbidos de insetos e até o barulho do pisar, em folhas secas, trazia-me sensações novas, envolvida, como estava, na magia do ambiente. Ouvi, então, o chocalho d’água, desabando pedreira abaixo, batendo bruscamente ao encontro de uma bacia acolhedora, transformando sua fúria em apaziguante e confortadora lagoa, onde a vida animal e vegetal brotava. Senti-me tentada a fazer parte daquela paisagem fascinante. Olhei para os lados, ninguém. Num ímpeto irresistível, despi-me. Saltei. Molhei-me, debaixo do jato gotejante da cascata, e nadei até a outra margem. Quando ouvi vozes aproximando-se. Escondi-me atrás de uma pedra. Aguardei. Sem ser vista, de soslaio, contei cinco rapazolas. Fizeram, como fiz: tiraram toda a roupa e mergulharam. A brincadeira não cessava, era só risada, palavrões. Pareciam não ter fim as gozações entre eles. A tarde declinava. Tremia de frio e de receio de que a noite me pegasse, nesse lugar estranho, e não soubesse orientar-me na volta. Apavorei-me. Os mocinhos, cansados de nadar, resolveram se enxugar. Infortúnio! Descobriram minhas roupas! Foi uma diversão! Um tal de querer enfiar as peças íntimas um no outro! Os xingamentos! Cruzes! Impossível repeti-los. Farto das besteiras, um deles sugeriu: – Que tal jogarmos tudo na poça? Vai ser o “must”, quando, quem deixou esses trapos aqui, voltar. Que susto! Nada terá para vestir! – Ótimo! Cada um pega uma destas belezinhas e atira na correnteza. Ganha uma cerveja, aquele que arremessá-las mais longe. Vi os meninos prontinhos! E todo o meu
vestuário, ondulando rio abaixo. Sem pensar,
esquecida da nudez, saí do esconderijo e gritei: Os garotos, perplexos, largaram o que restava no chão e se mandaram. Assustados, entre eles, dialogavam: – Fomos avisados para tratá-la muito bem. Ela é a tal “Madame Chique”, como os donos da sede. – Foi um mau começo. – Também, sendo tão “bacana”, não tem sequer um traje “última moda” para tomar banho na cachoeira? – Vai ver que é o “fio dental” moderninho, que se usa nas cidades grandes... Às gargalhadas, foram se afastando. Gelada, retornei ao lado oposto. O crepúsculo já se fazia presente. Às apalpadelas, com pavor de ser picada por cobra, localizei uma única peça, um pé de meia. As outras? Perdidas... Que fazer? Preocupei-me. Qual desculpa daria aos anfitriões, quando retornasse à sede? Desagradável! Eta tarde besta!
Abri a porta para dar entrada aos “Anjos de Rubis”. Imaginação? Mas nada era além de um bordado, em ponto-de-cruz, em que trabalhava há dias. Talvez, fosse mais fácil modelar botões, ou mesmo arquitetar couves decorativas, ou qualquer outra banalidade. E não pretender, em um pano, desenhar, com linhas, as imagens de anjos maravilhosos, que vagueiam no Paraíso Celestial.
Sonho Fantasia
Não encontro meu pequeno pente rosa, que me acompanha, há três anos. Ainda, ontem, estive com ele, em minhas mãos. Porém o guardei não sei onde, e procuro que procuro. Por que tanta ansiedade? Afinal, não passa de um pente comum de osso ou plástico, sei lá! Afirmo que não é jóia de cabo de madrepérola, ou pintado artesanalmente, ou todo em ouro, com aplicação de filigrana portuguesa. Nada disso: é um pente comprado por R$ 1,99, sem valor monetário. Sem valor? Oh! Isto não! Seu preço estimativo é incalculável. De uma lembrança inesquecível, pois foi um presente de “alguém”, num movimento de carinho, carimbando-o com um final: “Agora, ele é todo seu!”
Inúmeras são as tardes de chuvas memoráveis, em minha longa existência. Uma, em particular, deixou marca no vasto campo, em resgates amargos. Lembro-me: papai trouxe-me do Rio de Janeiro, como prêmio pelas brilhantes notas escolares e entrada na Escola Mista Sete de Setembro, um conjunto apropriado para chuva. Como era completo! Capa, chapéu, guarda-chuva e galocha emborrachada, na cor de minha preferência, vermelho. Uma graça! Era de trazer sorrisos, exclamações de alegria a qualquer criança, nesse caso, “EU”! Entusiasmada, não via a hora de chover para estrear, com orgulho, toda aquela belezura! Assim aconteceu e como! Certa tarde, lá fui eu em direção à escola. Gotas d'água, como pedrinhas, tamborilavam no tecido de meu guarda-chuva e caíam em cortinas molhadas. Porém meu traje me conservava enxuta, era impermeável. Ao chegar à escola, não entrei logo. Aguardei os colegas, que me devoraram com os olhos. – Como você está linda! Sentia-me a própria “Miss Brasil 2000”! Mas – sempre o mas –, um garoto malcriado gritou: Rindo, afastou-se. Fiquei triste, porém não me perturbei. Entrei no vestíbulo, retirei todo o aparato, guardei-o em uma prateleira, onde os alunos punham os agasalhos e demais parafernálias não necessárias às lições, e encaminhei-me para a classe. Quando a aula terminou, fui correndo para o galpão, um vestíbulo, para recolocar meus acessórios. Qual não foi minha surpresa: alguém, com uma tesoura, teve o trabalho de cortar em pedacinhos todo o meu traje encantador! Assustada, gritei e chorei alto. Saí, correndo para a rua, em direção a minha casa, sem atender aos chamados e apelos da professora e dos colegas. Cheguei encharcada. Valeu-me uma semana de gripe e um certo amargo mal-estar, que perdura até hoje. Era uma vez, numa certa tarde fria e úmida, aconteceu minha primeira chuva.
Maio, segunda-feira, manhã fria, céu azul, quase marinho, sem nuvens, típico dia de inverno, comum nessa estação do ano. Os telhados cobertos por uma tênue camada de gelo, que derretia, lentamente, sob o calor morno de um sol radioso e límpido. Os termômetros marcavam temperatura de alguns graus negativos. Porém nada a estranhar. Na minha cidade natal, Poços de Caldas, montanhosa, rodeada de vegetação exuberante e, naquela época, com florestas intocadas, altitude de 1.800 metros, tudo isso tornava esse rincão, uma das regiões geladas do país. Nós, os menores – família de oito filhos –, permanecíamos em nossos quartos, até quase a hora do almoço, meio-dia, evitando, assim, o resfriado forte e, talvez, outras conseqüências. Foi, então, num desses despertares matinais, que ouvi vozes, não, as que estava acostumada, mas diferentes. Meu quarto tinha comunicação com o de meus pais, por uma porta, que, naquele momento, encontrava-se fechada. Apesar do claro da manhã, que insistia em iluminar meu espaço, senti pavor. Quem seriam esses estranhos, que falavam não sei o quê, com uma tonalidade tão baixa, quase aos cochichos, que não me deixavam entender o que diziam? Cobri minha cabeça e pus o dedo polegar, tapando minhas orelhas. Não queria ouvir, sentia medo. Dali a pouco, gritaria de mamãe, por ora, chorava baixinho. Fiquei imóvel, fingindo dormir, até que as vozes e o movimento, no quarto, cessaram. Então, levantei-me pé ante pé, cheguei junto à porta, entreabri-a e arrisquei uma olhadinha. Surpresa! O quarto estava cheio de bonecas de todos os tamanhos e feitios. Lindas demais, certamente, vieram me visitar. Que bom! Examinei-as, deliciei-me, contemplando-as inúmeras vezes, sonhei vê-las assim reunidas. Na verdade, estavam dentro de uma caixa, bem amarradas, para não caírem. Creio que estavam à espera de que as libertasse. Entre todas, a que mais enchesse meu querer e encantasse meu coração, seria minha predileta e companheira de folguedos. Escolhi: uma boneca loira, de cabelos encrespados, boca vermelha entreaberta, deixando ver seus dentes brancos, em sorriso alegre, face corada, tez clara, com olhos azuis, que se moviam, usava um chapéu de palha com fitas coloridas, vestido de organdi rosa, com renda e bordados. Seus braços, cheios de pulseiras e os dedos, embora fixos, estavam abertos a pedir carinho. Seus pés não estavam à vista, pois calçava sapatos de salto alto e compridas meias brancas de seda. Era bela, totalmente deslumbrante, tal qual uma fada. De imediato, batizei-a de “FADINHA”. Ouvi passos, vozes. Alguém se aproximava. Precisava afastar-me. Não tinha permissão para permanecer naquele “Paraíso de Bonecas”. Catei Fadinha. Escondi-a debaixo da cama de meus pais, bem lá no fundo, junto à parede, e corri para o meu quarto, tendo o cuidado de fechar a porta. Deitei-me, cobri-me e fingi que dormia. As pessoas vieram, falaram baixinho, movimentaram-se e saíram. Levantei-me e fui ver o que acontecera. Todas as bonecas tinham ido embora. Que pena! Todas? Não. A Fadinha estava onde eu a pusera.
Delicadamente, livrei-a da caixa e, com amor,
beijei-a. Nisso, papai e mamãe entraram no
quarto. Viram-me abraçada à boneca. Olhei-os,
receosa, mas ouvi o que mais desejava:
Que coisa! Aquele guarda-chuva não abria, e a chuva engrossava. Também, fui cair na prosa de um vendedor de rua, que afirmou ser um finíssimo artigo automático, feito na China e em preço de ocasião. Não acreditei muito, mas devido à urgência do momento, sem escolher, peguei “UM”, ao léu, – segredo, paguei “SÓ” R$ 2,00 – e saí correndo para pegar meu ônibus, que se aproximava. E depois, mané? Desci no meu ponto, o guardachuva não funcionava, emperrou. Sentia-me toda molhada. Afinal, “vapt-vupt”, abriu... Que incauta! O tecido todo furado. Varais quebrados. Uma vergonha! Atirei-o longe, a roupa gotejava. É melhor sorrir, dançar e, como Gene Kelly, “Cantar na Chuva”.
Houve uma época em que papai possuía um sítio, quase às margens do rio do Carmo, bom de peixe. Após a pesca ser liberada, havia, em nossa casa, quase todos os dias, reunião dos amigos pescadores. Preparavam-se para a pescaria anual: traçavam planos, calculavam os preços dos acessórios, armazenavam mantimentos. Naturalmente, o mais importante, inesquecível: vara forte, flexível, linha de nylon, anzóis, redes, cesto de vime, iscas (faziam criação de minhocas o ano inteiro). Também, imprescindível: linha cortada em pedaços razoáveis, fósforos, lamparinas de querosene, pois pretendiam pernoitar ao relento, e repelente de moscas. A indumentária pessoal, um luxo: botas, chapéu, impermeáveis. Uma pequena farmácia, com todos os atendimentos de urgência: desde uma simples dor de barriga a imprevistos maiores, como: fratura, ou picada de inseto, ou cobra. Era uma festa. Os preparativos duravam, no mínimo, uma semana. Nessa confraternização, não poderia faltar a fala mentirosa do pescador. Ganhava certa quantia quem contasse a história, ou, por outra, o caso mais incrível e verdadeiro, acontecido pessoalmente, numa pescaria... Então, um deles, o que foi premiado, relatou: – Certa tarde de sol colorido, saí para o mar, no meu barco, todo ajambrado para pescaria. Percebi certo movimento n'água: era um peixe grande. É pra já! Atirei o anzol, senti fisgá-lo, mas onde estava a força para arrancá-lo do mar? Eu puxava para mim e ele me puxava para ele, e venceu: caí na água e o peixão me devorou. Desci pela goela dele. Desmaiei. Faltava ar. Não sei o que houve, talvez, meus trajes, ou, sei lá, sempre fui indigesto! O fato é que enquanto lutava para voltar à sua bocarra fétida, senti ser impulsionado para fora. Fui arremessado, todo babado, em uma praia paradisíaca. Para recepcionar-me, havia lindas sereias canoras. Hum! Que mentira deslavada!
Atendendo ao convite de meu amigo, para passar o fim de semana, em sua casa de praia, preparei-me. Peguei a estrada, cedo, no meu Volks, com molejos comprometidos. Como um velho, com as juntas enferrujadas, fomos sacolejando rumo ao litoral. Deliciava-me, por antecipação, com os gostosos dias à beira-mar, queimando-me ao sol, divertindo-me com a alegria das pessoas, com o jogar de palavras ao vento e, principalmente, com o saborear dos manjares dos deuses, que o anfitrião mandaria preparar: frutas da ocasião, peixes variados, tortas salgadas, doces, sucos, vinhos diversos, sobremesas requintadas! Hum! Água na boca! Necessitava de um relaxamento, sair da agitada vida de trabalho e desfrutar algum lazer. Imaginava como seria essa casa de veraneio, numa praia particular, rodeada de matas fechadas. Um casarão térreo, coberto de sapé, com um vasto terraço cheio de redes e espreguiçadeiras. Dentro, estilo praiano, decoração com aparatos de pesca e peixes raros petrificados. Uma casa confortável, sem pretensão: para banhistas, pescadores, apreciadores da vida marítima. Cheguei, surpreendi-me! Diante de meus olhos, uma mansão estilo virginense, ladeada por palmeiras imperiais. O piso, em lajotas de mármore branca, entremeadas com tufos de folhagem. Um paraíso tropical! A praia ficava, mais ou menos, a uma distância de trezentos metros, separada por uma mureta de pedras, naturalmente, para impedir o avanço do mar nos dias de ressaca. Os carros, já em grande número, estacionaram ao longo da vereda, marcada pelas plantas. Acompanhei a maioria. A pé, caminhei rumo à porta principal. Na entrada, um enorme painel com figuras esquisitas e instrumentos musicais exóticos. Acima, em letras garrafais, o cabeçalho: “Bem-vindos”. A porta estava aberta, convidando-me a entrar. Foi o que fiz! Em uma saleta lateral ao hall central, depositei minha maleta, juntamente, com as outras. Voltei-me, então, para um grande salão, ricamente decorado com uma enorme quantidade de flores silvestres. Procurei localizar, entre as pessoas presentes, meu amigo. Não o vi. Talvez, houvesse conhecidos: companheiros de trabalho, reuniões sociais, cursos, ou do corre-corre diário. Não os achei. Nem um só rosto, que pudesse ter visto anteriormente, em qualquer lugar. Que coisa! Só desconhecidos! Senti-me a própria “jacu na festa do nhambu”. O pior: logo a fome chegou e, com ela, a sede e a vontade de me aliviar. Onde estaria a rica mesa cheia de iguarias? Garçons com aquelas bebidas saborosas, geladinhas? Uma senhora perguntou-me se sabia onde ficava a toalete, outra, a cozinha. E alguém, ainda, se conhecia o paradeiro do anfitrião. Infelizmente, não encontrei respostas para toda essa parafernália. Notei que os presentes não se conheciam. Estranhos entre estranhos! As horas passavam. Nenhuma explicação. Nosso amigo não chegava. Onde estariam os serviçais? Os comes e bebes? Situação ridícula! Algumas pessoas já começavam a retirar-se. Até que chegou minha vez. Afinal, eu e minha perereca tínhamos uma estrada de volta a enfrentar. Rodovia escura, poeirenta, perigosa para uma mulher só, faminta, sedenta, suada! Cheguei à conclusão: essa brincadeira esdrúxula era esquizofrenia de um novo rico excêntrico. Então, uma luz! Relembrando o painel, decifrei a charada! Figuras fantasiadas, atrás de máscaras, com olhos vedados, tocavam diferentes instrumentos musicais exóticos. Acima, a saudação de boas-vindas. Sim, agora entendo: “Bem-vindos, fantoches cegos, os convidados, ignoram quais os sons emitidos não se conhecem. Cada um na sua, virem-se.”
Essas balas carameladas de Jacareí! Ninguém pode calcular como as aprecio! Parecem mel, enroladas, brilhantes, apetitosas. E, na boca, que delícia, um néctar dos deuses! Sempre que um amigo vai a essa cidade, encomendo uma porção delas para saciar minha vontade. No momento, tendo em minhas mãos uma balinha dessas, tento desembrulhá-las, mas o papel, que a envolve, resiste à minha tática. Está aderido ao material açucarado. Procuro retirar o invólucro, com habilidade manual, nada. Levo-a aos dentes. Saem pedacinhos do papel, mas, do doce saboroso, nada. Vou buscar uma tesoura, corto as partes laterais, nada... Que abuso!!! Minha boca inteira salivada. Sabe de uma coisa? A bala não quer ser desembrulhada: puxo aqui, ali, e nada. Faço de conta. Se a bala não quer desembrulhar, assim mesmo levo-a à boca e degusto. Papel de bala é bala. Que gostosa! E a bala se desembrulhou, sozinha!!!
Cheguei ao terraço do meu edifício. Comecei a observar o que se passava lá embaixo. Notei, talvez, pela primeira vez, no telhado de um “POP”, bem na frente, e esquina de minha rua, que a cobertura, em telhas avermelhadas, sustentava uma caixa d'água dupla, enorme, de uns 5.000 litros cada. Fiquei conjeturando: “Como seria a base de apoio das mesmas? De cimento, ferro, madeira, tijolo? Deveria ser um material forte, caso contrário o depósito viria abaixo”. Trafegando, pela frente do bar, um garoto pedalava sua bicicleta pela calçada. Seu traje, semelhante ao dos meninos de agora. Calças curtas, bermudas listradas, camisetas com estampa, boné virado para trás, tênis sem meias. Circulando pela calçada, um tomador de conta de cais segurava as guias de três labradores. Apressadamente, em direção oposta, uma mulher, com um vestido estampado em flores de cores variadas, carregava, em cada uma das mãos, sacolas do Pão de Açúcar. Seguindo-a e, logo atrás, caminhando apressado, um carregador, com uma grande caixa de papelão, equilibrando-a na cabeça. Talvez, fosse o carregamento de um aparelho elétrico, ou louças, mas, certamente, exigia cuidados e cautela. Era um trabalhador braçal forte, preocupado com a carga, que transportava. Arrastava os pés, para sentir o chão em que pisava. Calçava um chinelo encardido, gasto, velho. Para onde se dirigia? Parou diante de um prédio. Quase aos gritos, identificou-se ao porteiro. Possivelmente, deu-lhe o nome do destinatário a quem era endereçado. Entregou-lhe a nota do recibo e teve permissão para entrar, dirigindo-se ao elevador de serviço. O carregador seguiu as instruções do porteiro, que lhe mostrou o elevador e como dirigir-se ao 11° andar, onde a encomenda seria entregue. Pousando a caixa de papelão, diante da porta do apartamento indicado, o peso estava insustentável, apertou a campainha com insistência. Alguém, lá de dentro, abriu a porta, impetuosamente. Na pressa, esqueceu-se de prender o cão, que foi em cima do entregador, com dentes à mostra, rosnando, avançando para morder. O funcionário assustado, na ânsia de livrar-se do massacre, afastou-se de costas e caiu em cima da caixa, afundando-se dentro dela. Ouviu-se o tilintar de vidros partidos e triturados.
Colocar os óculos é querer ver a vida até o fundo. Somos movidos pela emoção. Colocar os óculos é ter com quem dividir os
sonhos desejados. Colocar os óculos é participar do início de
uma partida e acompanhá-la. O tempo passa. A cantiga se cala. O menino cresce. A vida se modifica. Colocar os óculos de lentes cor-de-rosa é ver
poeira do vento, que vagueia.
Desperto minha bíblia poética. Torço as cancelas das venezianas, anjos no alçar de vôo, separando os amantes adormecidos. Nasce a claridade, paulatinamente, sem passado nem futuro. Olho para fora, sinto a harmonia do universo. Viajo. Liberto-me dos grilhões do pensamento. Fumaças de algodão cobrem as lendas das montanhas. Carapuças brancas põem barretes nas testas dos montes. No teto arqueado, tênue véu desafia o poder do varão-sol. Miríades de lamparinas vão se apagando diante do brilho do astro-rei. A lua, assustada, corre a esconder-se atrás das nuvens. Receia ser queimada pela escaldante paixão da bola de fogo. Surge a manhã, donzela produzida para a festa da natureza-mãe. A escuridão rareia, aos poucos, e vem, o alegre dia, em carro de luz, eternamente jovem, trazendo consigo o Renascer da Vida. Volto a mim. Desço a cortina do cenário e tranco meus devaneios, no cofre da imaginação.
Olhando para o espelho, entro num cismar profundo. Dentes, dentição, dentadura: infância, maturidade, velhice. Janelas abrindo ao alvorecer: primeiros sinais da infância. Dentinhos que nascem, rompendo obstáculos carnais. Sobrevida, primeira luta, primeira vitória. Entrada pelo viver afora... A tarde foi chegando, chegando... Mudança de dentes – do leite ao esmalte –, juventude, força da esperança; surdez, ante os estrondos dos fracassos; deslumbramento, diante do amor. Sentimentos a bailar na dança da vida. Vem a noite, levando a alegria franca. Desenganos. Quanta falsidade, até no sorriso da velhice! Não mais o mar azul da infância! Não mais a doce lua da juventude! No crepúsculo da existência, só desencanto e a triste poesia dos fantoches inertes. Finda a vida...
Hoje é dia de circo. O cortejo circense passa anunciando o espetáculo. Nossa alegria, minha e de meus irmãos, é intensa. A criançada em coro, às gritarias, demonstra suas preferências: palhaço, trapézio, equilibrista, animais. Acima de tudo, as guloseimas: sorvetes, pirulitos, balas, chocolates, arroz e algodão doces e todas as outras novidades gostosas. E o mais importante, o circo está armado bem pertinho de casa, na Rua do Comércio. Mamãe prepara, desde cedo, nossa merenda para levarmos ao circo. Faz parte do divertimento. Coloca nosso lanchinho em cima da bandeja. O ritual - arrumar os filhos para irem à exibição mais parece uma oração, tais as recomendações dadas. – Comportem-se, meninos, assistir ao desempenho dos artistas é apreciar a execução de um preparo metódico e disciplinado. Não é só divertimento, mas, acima de tudo, dar-lhes o devido valor ao esforço, dedicação exaustiva e sobre-humana. Desde muito criança, são treinados para uma modalidade de exercício, tornando-se flexíveis e aptos. Ao despertarem, causam pasmo, admiração e são merecedores de aplausos. A atenção silenciosa dos ouvintes é interrompida
por uma vizinha:
Sentada em uma almofada, no quarto de minha irmã, observava, atentamente, seu trajar para um baile de quinze anos. Meu olhar de criança – de cinco anos apenas –, vivia um instante de encantamento. Seu longo vestido cor-de-rosa de tafetá de seda brilhante, sapatos altos recobertos do mesmo tecido, laçarotes prendendo as grossas tranças, pulseiras e colar dourados. Como estava linda! Sonhava que deveria ser assim a fada da história, contada por mamãe para me adormecer. Ah! Quando crescer, quero um vestido igualzinho! Via-me maravilhosa! Resplandecente! Um pompom! Minha irmã, depois de pronta, penteada, abotoada e alisada, pondo-se à frente do espelho, girava de lá pra cá, de cá pra lá, a fim de verificar se tudo estava “nos conformes”. Então, abriu seu armário e retirou, de dentro, um vidro colorido de formato arredondado, fechado com uma tampa trabalhada e transparente. Pegou o frasco e molhou, delicadamente, as pontas dos dedos, levando aquele líqüido para trás da orelha. Milagre! Ficou cheirando a rosa! Delicioso! Empinei meu nariz e inalei aquele aroma divino. Notei que, cuidadosamente, guardou aquele perfume mágico num cantinho escondido de seu armário. Permaneci, sozinha, em seu quarto. Era agora! Olhei bem a porta. Ninguém. “Não pude usar seu vestido maravilhoso, mas, pelo menos, posso ficar cheirosa!” Fui direto ao esconderijo. Peguei o vidro, apressadamente, alguém poderia aparecer, desatarraxei-o e entornei aquela água-de-cheiro, não só no meu cabelo, como em toda minha roupa. Hum! Que cheirinho bom! Mas que desastre: ao guardar o frasco, o sem-graça escorregou da minha mão. Pimba! Foi-se para o chão, espatifando-se em mil pedaços. Quando vi a arte feita, corri e escondi-me. Porém, como um ratinho que julga estar seguro na toca deixando o rabo à vista, assim também fiz. O cheiro do perfume impregnava por onde passava. Que falta de sorte! Tomei o maior banho de minha vida, ensaboada e repreendida. Contudo o perfume persistiu por muito tempo.
Deixo-me ficar numa longa caminhada interior. Sou boneca, em fiapos, e tento fugir de casa, escalando a alta muralha. A grande parede tem alma, renasce, dialoga, lembra... No silêncio de mim, o trânsito louco da saudade, o vaivém dos sonhos, angústias, desejos. Horas mortas, frias, instáveis, como o fluir do tempo. Por uma fresta, descubro, muito além, o clarão: Sem portas, nem janelas, o limiar. Num carro veloz, sigo o caminho das flores, a fogueira das cores e fujo dos abismos. Afinal, avisto uma estrela cadente, A boneca em fiapos da abóbada celeste.
Noite de insônia. Com os olhos abertos, Ana dá asas à imaginação: sem fronteiras, sem conflitos. Uma oscilação impertinente sacode a janela. É o vento, quer derrubar o refúgio do seu ninho. Prenúncio de tempestade. Resolve levantar-se. Caminha, abre a cortina, e um sopro forte, sem esperar ser convidado, penetra na intimidade de seu quarto. À vontade, rodopia, assobia e deixa um rastro atrás de si. Audacioso, sibila, nos ouvidos de Ana, sons inaceitáveis. Levanta seus cabelos, arrepiando-os e até penetra em seus pensamentos. Joga, destrói objetos de estimação, danificando o que está ao seu alcance. Fora, a borrasca começa: relâmpagos, trovões, aguaceira pesada. Ana, com esforço, consegue fechar a veneziana e a vidraça. Expulsa o intruso, que, assustado, foge. Como num delírio, o ambiente se transforma: tremenda desordem, confusão, quebradeira. Apenas um mau sonho? Não! Sim, um pesadelo, sem sorriso!
Seu encontro foi casual. Apenas se cruzaram na calçada. Mas foi o suficiente. Parou, olhou para trás. Sentiu sua temperatura subir e o coração disparar. Ficou im-pres-si-o-na-dís-si-mo com sua elegância e charme! De volta à casa, o tempo todo só pensava nela. Suas íntimas fibras foram tocadas. Tremia na base. Já, em seu quarto, sua figurinha ocupava todo o espaço. Como era linda! Morena, olhos de jabuticaba, tez clara, lábios rosados e o corpo – hum! –, um corpo escultural, cheio de trejeitos, uma pintura! Sentia-se afogado em suas curvas. Porém, o que mais o encantou, foram, certamente, os seus cabelos: negros, lisos, brilhantes, compridos, pela cintura. Para realçar, mantinha-os presos com um lenço vermelho. Diante de tal sufoco, ficou, também, vermelho de paixão, com adrenalina a mil! Voltou à rua, procurando, com os olhos, aquela que tanto o fascinara. “Era uma ovelha sedenta, buscando água límpida de um riacho”. Mas, mas... como Conceição, a da modinha, sumiu e ninguém viu!!!
Abro a janela para participar do sorriso da natureza. Havia chovido toda a manhã. Agora, uma tarde de sol brilhante, num céu azul, sem nuvens. A ciranda do viver era evidente. A passarada espalhava pelo ar suas nostálgicas melodias. Libélulas, aos pares, em vôos sincronizados, procuravam pouso. Borboletas de asas frágeis eram carregadas pelo vento. Cigarras vadias ciciavam ao léu. Até as lagartas, que se arrastavam pelo chão, ao pressentirem o mais leve ruído, escondiam-se no casulo. Uma suave brisa farfalhava nas folhas dos arbustos molhados. Ah! Queria, também, sentir o afago daquela festividade. Saí do silêncio de meu quarto, corri, livremente, em direção a minha fantasia. Que garota, hein! Nem se importava com seus sapatos furados! Até que os mergulhou numa poça. Sem querer, é claro! Nesse vaivém dos sonhos, notei que, também, fazia parte dessa orquestração desafinada. O choc-choc marcava o passo de dança de meus sapatos encharcados. Como as aves, as cigarras, os grilos e os pingos d'água, eu era sonora! Choc-choc-choc, compasso de axé! Busquei, então, no imaginar: um quintal sem dono, lá no fundo de mim. E toda essa parafernália em função...
Dentro do emaranhado da rede, uma linda dama foi assediada por um galante cavalheiro, com um imenso desejo de conquistá-la. Trazia, em uma de suas mãos esquálidas, um ramo de rosas. Ofereceu-o à dama, na certeza de não ser recusado. A linda jovem olhou-o e sentiu-se atraída pelo personagem tão gentil. Não reparou na figura. Nem notou que seus braços descarnados mais pareciam plumas de uma asa inexistente. Apenas, observou seu gesto tão amável em dar-lhe aquelas lindas flores. Qual seria a intenção daquele estranho ser? Talvez, dizer, com palavras não pronunciadas, aquela frase tocante: “Eu te quero para mim”. Repetia-se a história da “Bela e a Fera”, nesse caso, não era “Fera”, mas, “Feio”. A donzela sentiu-se embevecida. Um perfume mortal envolveu-a. Ingenuamente, deixou-se dominar. Acompanhou-o para a Eternidade. Culpa das rosas.
No espelho: cabelos finos e lisos, testa alta, olhos tristes. Procuro melhorar a figura. Passo as cerdas da escova nos cabelos, num agradável movimento de carícia: um som de farfalhar de brisa nas roseiras. Desembaraço-os, para cima, dama antiga, para baixo, bruxinha assustada, para frente, ventania, para trás, recordações do tempo do Charleston. Mas, que coisa! Não seria bom pentear-me, naturalmente, como sou, sem assustar nem surpreender as pessoas? Enrolar, alisar, desfazer e repentear... O melhor mesmo, limpar a escova e recolocá-la na penteadeira.
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